Ao lançar sua primeira obra no Brasil, que se passa na África entre as duas guerras mundiais, prêmio Nobel fala do drama dos refugiados e da literatura como motor de mudanças

Porto Velho, RO - Aos 18 anos, Adbulrazak Gurnah escapou da ilha de Zanzibar, na Tanzânia, após uma revolução derrubar o governo controlado por uma elite de origem árabe.

Desde os anos 1960, vive no Reino Unido. Sente-se em casa por lá, mas afirma que se o acordarem no meio da madrugada e perguntarem, à queima-roupa, “onde é a sua casa?”, ele decerto responderia: Zanzibar. Autor de dez romances, Gurnah venceu o Prêmio Nobel de Literatura no ano passado por sua “penetração intransigente e compassiva nos efeitos do colonialismo e o destino dos refugiados no abismo entre culturas e continentes”, como justificou a Academia Sueca.

“Sobrevidas”, primeiro romance de Gurnah traduzido no Brasil, que chega hoje às livrarias, exemplifica o compromisso do autor com a denúncia do colonialismo — e com boas histórias. Ambientado na antiga África Oriental Alemã, região da Tanzânia, o romance acompanha quatro personagens do início do século XX à Segunda Guerra Mundial: Khalifa, que se esforça para levar uma vida tranquila, apesar dos conflitos entre as potências imperialistas: Hamza, que serve às tropas alemãs durante a guerra; Ilyas, que acredita na bondade dos colonizadores; e sua irmã, Afiya, que apanha por saber ler.

Mais dois títulos de Gurnah serão lançados por aqui no ano que vem: “Paraíso”, sobre um garoto vendido pelo pai para pagar uma dívida, e “À beira-mar”, que retrata a vida de dois imigrantes africanos no Reino Unido.

Em entrevista ao GLOBO, Gurnah, de 73 anos, comentou a atual crise de refugiados na Europa e o que a literatura pode fazer diante da injustiça.

Acredita que ter sido refugiado fez de você um escritor?

Se eu não tivesse passado por essa experiência, talvez escrever não fosse tão importante para mim. Mas nunca vou saber com certeza. Foi assim que aconteceu e eu dei o braço a torcer.

A Europa vive uma nova crise de refugiados. Há quem aponte as diferenças entre os tratamentos dados aos ucranianos e aos refugiados vindo da África e do Oriente Médio.

É uma crítica correta. Os ucranianos devem, sim, ser recebidos de forma calorosa, mas é inevitável notar a diferença. Poucos meses atrás, soldados impediram refugiados sírios e afegãos de entrar na Polônia, apesar do inverno congelante. É um exemplo vívido de como refugiados não europeus são tratados.

É injusto e desumano. Nem toda a Europa deu as costas aos refugiados durante a última crise. A Alemanha abriu as fronteiras para os sírios. Portugal, Espanha e, por um momento, até a Itália receberam refugiados. Já países como Grécia, Hungria e Polônia têm problemas com refugiados. A França, particularmente, tem problemas com muçulmanos.

A literatura pode fazer alguma coisa pelos refugiados?

A literatura ajuda porque informa. Se vejo uma injustiça diante dos meus olhos, talvez não possa resolver imediatamente. Mas, se muitos de nós vemos uma injustiça, podemos pressionar quem de fato toma as decisões. Expor a injustiça sempre vale a pena.

Em uma passagem do livro, um missionário alemão olha a paisagem e diz : “É um lugar sem nenhum significado na história das conquistas humanas”. Contar a história da África é importante para o seu projeto literário?

A ideia de que a África está fora da História vem do Iluminismo, que acreditava só haver vida inteligente na Europa. No século XIX, os europeus quiseram aprender sobre essas outras culturas para melhor dominá-las. Foram condescendentes, paternalistas e nos devem desculpas. Para o senso comum, a Primeira Guerra Mundial só aconteceu na Europa.

Talvez no Oriente Médio. Na África, a guerra foi terrível, especialmente para os civis, mas a destruição e a brutalidade não foram registradas. Ninguém se importou. Eu cresci com essas histórias. “Sobrevidas” aborda um episódio importante não só da História africana, mas também da europeia, sobre o qual precisamos saber mais.

Com quais histórias você cresceu?

“Sobrevidas” fala do contínuo estado de guerra entre os invasores alemães e os africanos. Conheci pessoas que viveram esse período e ainda falavam dos alemães de maneira terrível, de como fora dura a ocupação e o combate às rebeliões. Parentes meus foram recrutados pelo exército alemão. Meu tio lutou com os britânicos.

Quando ouvi essas histórias, não me dei conta de que eram africanos lutando contra africanos. Só percebi essa ironia depois. O que aconteceu na África durante as guerras mundiais é menos conhecido porque morreram muito menos soldados brancos lá do que nas trincheiras europeias.

Hoje há mais curiosidade sobre a arte e a literatura produzidas no continente africano. Como você vê esse fenômeno?

Quando os europeus quiseram aprender sobre a África no século XIX, os africanos permaneceram calados. Eles foram nos estudar. Não se preocuparam em aprender nossas línguas, apenas fizeram anotações e escreveram a História.

Hoje é diferente. Embora as pessoas ainda se tornem proprietárias de arte africana, elas podem também desenvolver uma relação não instrumental com ela. Já a literatura não é propriedade de ninguém, só pode ser lida. Quem lê não é dono, porque depois outra pessoa vai ler. Se você não fizer uma leitura inteligente, mas apenas ler para se apropriar, vai continuar ignorante.

No livro, aparecem palavras e frases em suaíli, árabe e alemão, que não são traduzidas. Qual a sua intenção ao expor o leitor a expressões e idiomas que ele não conhece?

Tento garantir que o sentido não se perca, mesmo que o leitor não saiba o exato significado. Escrevo sobre culturas polifônicas, que falavam suaíli, alemão, um pouco de árabe e inglês. Todas elas se misturavam e as pessoas não se entendiam direito. As línguas também foram esmagadas pela colonização. Línguas também são expressões de poder.

Quando você ganhou o Nobel, o New York Times publicou uma reportagem dizendo que não era fácil encontrar os seus livros. O prêmio mudou essa situação?

Vários veículos pareciam dizer “ninguém nunca ouvir falar desse cara”. Eu não via minha carreira assim. Meus livros não venderam bem ou chamaram atenção nos Estados Unidos, mas se saíram bem em outros países. Mas, é claro, nada se compara ao sucesso pós-Nobel. Até quem não lê conhece o prêmio. E como muita gente só lê na própria língua, editoras do mundo todo estão interessadas em traduzir e publicar mais livros. É ótimo!

Você se preocupa que seus livros sejam reduzidos a comentários sobre o colonialismo?

Meus livros são só sobre isso? Claro que não. Espero que as pessoas os leiam e percebam que falam de colonialismo, mas também de outras coisas.

Você vive no Reino Unido, mas boa parte dos seus livros se passa na África. Onde você se sente em casa, na Inglaterra ou em Zanzibar?

Me sinto muito em casa na Inglaterra. Construí minha carreira aqui. Escrevo sobre Zanzibar, mas também sobre a Inglaterra. Mas, se você me acordar de um sono profundo, às três da manhã, e perguntar “onde é a sua casa?”, eu com certeza vou responder: “Zanzibar”. Não dá para fugir de um lugar que está dentro de nós. Mas aí você pode me perguntar: “Então o que você está fazendo na Inglaterra?” Aqui também é minha casa.

Fonte: O Globo