Jennifer Doudna, criadora do método de edição genética (CRISPR) fala também das primeiras aplicações clínicas da sua técnica

Em 2020, a cientista Jennifer Doudna, ganhou o Nobel de Química pela criação da técnica CRISPR, que revolucionou a ciência mundial. O Crispr é uma edição genética que permite mudar parte do código genético de uma célula. O método já foi usado, por exemplo, para modificar o genoma de embriões humanos e criar trigo resistente a pragas, por exemplo.

— O desafio será fazer os tratamentos de primeira geração terem um custo acessível para quem mais precisa deles — disse a bioquímica em entrevista ao GLOBO.

O Instituto de Genômica Inovadora (IGI), que Doudna dirige na Universidade da Califórnia em Berkeley, acaba de firmar uma parceira com a Iniciativa Ciência Pioneira, programa do Instituto D'Or de Pesquisa e Ensino (IDOR), do Rio, e já tem dois cientistas brasileiros na colaboração. Uma das frentes é a busca de um tratamento para anemia falciforme, doença hereditária do sangue.

Em conversa por e-mail, Doudna falou também sobre sua tentativa de usar a CRISPR para tratar doenças não-genéticas, sobre questões éticas em sua área de pesquisa e sobre desigualdade de gênero. Leia abaixo.

Uma década após seu estudo sobre CRISPR, já há dezenas de testes clínicos em diferentes doenças com a técnica. Quais devem ser os primeiros a chegar aos pacientes?

Os ensaios clínicos sobre a anemia falciforme são os mais avançados e têm mais chance de serem os primeiros aprovados nos EUA. Mas essa doença é um problema ainda maior em outras partes do mundo, incluindo o Brasil. Cerca de 4% da população brasileira sofre de anemia falciforme. O desafio será tornar estes tratamentos a um custo acessível e fazê-los chegar às pessoas que mais necessitam deles.

Um dos cientistas brasileiros que estão no seu laboratório, Thiago Leal, trabalha com anemia falciforme. O outro, Bruno Solano, pesquisa doenças neurodegenerativas. Quanto progresso vocês obtiveram até agora?

Estamos muito felizes por tê-los no IGI! Houve um progresso surpreendente na doença falciforme. A mutação que causa a doença falciforme é uma mutação de uma única letra no código genético, por isso é bem compreendida e as formas com que podemos atacá-la com a edição do genoma CRISPR são relativamente simples. 

Ainda há muito mais que podemos fazer para tornar a terapia mais eficiente, mais fácil para os pacientes e mais acessível, e é nisso que estamos nos concentrando. Já as doenças neurodegenerativas são mais desafiadoras, por uma série de razões. É difícil aplicar medicamentos de qualquer tipo no cérebro. 

E a genética dessas doenças costuma ser mais complexa, envolvendo múltiplos genes ou mutações que variam em comprimento. Essa área teve bastante avanço nos últimos anos, e temos muita esperança de progresso com as doenças neurodegenerativas nos próximos anos, porque é uma área que necessita muito de novas opções de tratamento.

As terapias de CRISPR serão proibitivamente caras quando chegarem ao mercado?

Estou muito preocupada com o acesso justo. A primeira geração de terapias CRISPR será muito cara e estará disponível só em alguns lugares. É comum que isso ocorra com qualquer nova tecnologia, mas quando se trata de uma terapia com potencial de salvar vidas, é duro apenas pedir às pessoas que esperem o preço baixar. A solução para este problema está tanto no lado tecnológico como no lado regulatório.

Como podemos desenvolver terapias de manufatura mais barata e administráveis em qualquer lugar? Como as agências reguladoras podem criar incentivos para desenvolver curas acessíveis para doenças comuns e raras quando isso não se enquadra no modelo de negócio padrão da indústria farmacêutica? São perguntas desafiadoras, mas precisamos trabalhar nelas agora, e não apenas esperar que tudo dê certo.

A senhora anunciou que está pesquisando agora o uso de CRISPR para tratar doenças comuns com micróbios do intestino. Como isso pode ser feito?

Os microbiomas têm diversos papéis na saúde humana, alguns deles são úteis para nós, outros são problemáticos. Por enquanto não temos foco específico em doenças comuns ou raras, e sim em desenvolver ferramentas para estudar e intervir nos microbiomas com precisão, quando eles estão desequilibrados. 

Mostramos que é possível usar a CRISPR para editar com precisão um único gene de uma única espécie de micróbio, diretamente, em um microbioma. O próximo passo é aplicar isso a problemas do mundo real. 

A primeira doença que abordamos é a asma infantil. Sue Lynch, da Universidade da Califórnia em San Francisco, é especialista na área e uma das líderes desse projeto. A asma é uma das doenças crônicas mais comuns que afetam crianças em todo o mundo, e o grupo de Sue já identificou a fonte de alguns compostos inflamatórios no microbioma de crianças suscetíveis. Então, já temos um alvo. 

O objetivo é conseguir uma intervenção precoce, antes que a criança desenvolva asma, para evitar que se torne uma doença crônica.

A parceria do IGI com o IDOR pode ajudar no acesso às terapias de CRISPR no Brasil no futuro?

Meu laboratório e meus colegas do IGI estamos trabalhando muito com CRISPR, mas não podemos estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Nós não temos as mesmas prioridades de um instituto que fica em uma parte diferente do mundo. 

Por isso é importante para nós ajudar a construir capacidade local com as colaborações como a que temos com o IDOR no Brasil. É essencial que trabalhemos para melhorar o acesso onde quer que estas novas terapias possam ser de maior ajuda, não apenas no mercado dos EUA.

A população brasileira é geneticamente muito diversificada. Isso afeta os estudos com terapias de edição genética?

A medicina ocidental tem longa história de ignorar o valor da diversidade, tanto em pesquisa básica quanto em testes clínicos. A CRISPR é uma tecnologia que pode ter impacto global, mas para isso é preciso desenvolver terapias que atendam às necessidades de pessoas com origens genéticas diversas. 

A diversidade também nos ajuda a estudar as causas das doenças, porque algumas variantes genéticas raras ajudam a proteger as pessoas dessas doenças. Muitas vezes, essa foi a forma com a qual descobrimos alvos para possíveis terapias genéticas.

A senhora é signatária de um manifesto que pede um embargo na edição de genes em embriões humanos. Sua preocupação maior é com a tecnologia não ser segura? Ou acredita que há algo antiético em si na alteração de genes humanos, mesmo que possa ser feita com segurança?

A segurança da edição de células germinativas humanas é de suma importância, e a tecnologia não está atualmente em condições de fazer isso de forma segura e com a precisão necessária. A questão ética pode mudar com o tempo. Pode ser que chegue um momento em que seja considerado até antiético não tratar alguém caso tenhamos a capacidade de fazê-lo. 

Mas primeiro teríamos que ser capazes de editar células germinativas com segurança e precisão, e teríamos que encontrar um cenário em que não exista alternativa melhor que isso. É importante realçar que a vasta maioria das doenças genéticas pode ser tratada por meio da edição de células somáticas, um tratamento que afeta único indivíduo único e não é hereditário. É nisso que o campo está focado no momento e é onde veremos os maiores avanços.

Como ganhadora do Nobel, a senhora tem se envolvido em iniciativas de igualdade de gênero? A senhora e outras premiadas estão conseguindo inspirar mulheres a perseguirem carreiras mais ambiciosas na ciência?

Talvez eu nunca tivesse entrado para a ciência se eu não tivesse visto certa vez uma palestra científica de uma mulher quando estava no ensino médio. Espero poder fazer o mesmo para as jovens de hoje. Espero que elas me vejam e percebam que também podem ser cientistas. 

Tivemos muito avanço nos EUA na inclusão de mais mulheres em programas de ciências e matemática nas universidades, mas estes números ainda não se traduziram em realidade na indústria biotecnológica, onde ainda existe forte desequilíbrio de gênero. 

Temos um programa no IGI chamado Women In Enterprising Science, que apoia cientistas com o compromisso de resolver o problema da igualdade de gênero no setor de biotecnologia, para que elas criem empresas e aprendam com fundadoras que vieram antes deles. Eu adoraria ver mais iniciativas como essa em todo o mundo.


Fonte: O GLOBO