Diretor de alguns dos filmes mais quentes do cinema brasileiro roda novo curta, critica censura em cena de masturbação, diz que Tinder ‘liberou ninfomania’ e sonha com Pabllo Vittar e Fiuk em novos projetos

Porto Velho, RO - Imagina chegar na casa de um dos cineastas que mais injetou sexo no cinema brasileiro e dar de cara com uma Bíblia? É isso que acontece com quem atravessa o portão verde no final da Alameda das Mangueiras, na Ilha da Gigóia, onde mora Neville D'Almeida. O livro está em um altar e cada dia fica aberto numa página (na ocasião, era no capítulo 46 do Livro de Isaias).

Criado na Igreja Metodista, o diretor mineiro de 82 anos se define como "protestante independente". Diz que ter lido a Bíblia é sua "grande vantagem" em relação aos outros cineastas do país porque "todas as histórias estão ali". Mais que nunca são os dramas existenciais que continuam alimentando a criação do diretor de "A dama do lotação" (1978), "Os sete gatinhos" (1980) e "Rio babilônia" (1982).

"Obsessão" é o título de seu novo curta-metragem, rodado em um dia sob o conceito de "cinema relâmpago" ("o jeito que encontrei de filmar hoje no Brasil"). Conta a história de uma bailarina (interpretada pela atriz Patricia Niedermeier) perseguida por um fanático (vivido por Bernardo Jaloto), que tenta estuprá-la.

A obra será lançada no dia 17 de julho, no evento que celebra 25 anos da produtora Cavideo e inclui a mostra "Neville lado B", com filmes raros do cineasta, restaurados e digitalizados por Cavi Borges. Cavi, aliás, garante que os títulos mais exibidos no Vimeo (site de compartilhamento de vídeos) da Cavideo são os filmes de Neville.


Neville no set de seu novo curta-metragem: 'Obsessão' Foto: divulgação

— Ele é pop. Desse jeito maluco, conseguiu fazer uma cinematografia que agrada tanto público quanto crítica.

"Relação abusiva" e "Ciúme" são outros projetos, minifilmes divididos em capítulos que Neville vai rodando "quando dá". Entre os mais de 30 roteiros prontos que sonha em levar ao set um dia há ainda "A dama na internet", sobre uma mulher que espezinha os homens ("sonho com Pabllo Vittar no papel") e a adaptação cinematográfica de "O anti-Nelson Rodrigues" ("chamei o Fiuk para o papel do playboy canalha"), penúltima peça escrita pelo dramaturgo e única, segundo Neville, com final feliz.

— Esses projetos estão prontos, falta produtor. Preferem produzir filmes com diretores amestrados, querem se meter cada vez mais nas obras — alfineta o artista, cujo filme mais recente é "A frente fria que a chuva traz" (2015).

Entre sonhos, devaneios e papos sérios, Neville se revela, nessa entrevista, bem distante da fama de libertino: "As pessoas acham que Neville é um tarado, que vive armando suruba ou ligando para cafetina", diz falando assim mesmo, na terceira pessoa, que nem o Pelé.

Você foi criado na Igreja Metodista. A religiosidade nunca te impediu de filmar cenas de sexo. Como deu a volta na culpa e no moralismo, conceitos entranhados em doutrinas religiosas?

A religião só me ajudou, funcionou como uma libertação. Não podemos aceitar o sentimento de opressão, pecado, limitação. Quando comecei a fazer cinema, decidi que seguiria a liberdade que não via nos filmes. Ficava revoltado com longas como "O homem mais bonito da cidade", que casa, entra no quarto com a mulher nos braços, beija, apaga a luz e, pronto, corta para o dia seguinte.

A minha religião é a do entendimento, da aceitação, da compreensão, da sensibilidade. É uma visão mais profunda, de libertação dos sentidos, das ideias, de buscar autocrítica e níveis mais elevados de amor e de perdão. Não sou evangélico, que virou um partido político cada vez mais distante da religião e mais perto da busca desenfreada pelo poder econômico, social, político.

A hipocrisia, a mentira e o falso julgamento que estão em todas as religiões não podem passar pelo artista. Quando vejo obras censuradas, acho triste. Dediquei a minha a vida a não fazer isso nem por meia hora.

Como é pensar o seu cinema no contexto atual, em que se pede a censura de um filme por causa de uma cena de masturbação?

Vivemos um momento de hipocrisia, moralismo exacerbado e profunda miséria sexual. Cortar uma cena dessa é inaceitável, absurdo. Arte sem liberdade é sub-arte.

O que quer dizer com miséria sexual?

É não exercer o desejo, é fingir orgasmo, é ser maltratada o tempo todo e achar que esse é o caminho da felicidade. A miséria sexual está na relação abusiva, na insatisfação sexual. Nunca na história da Humanidade houve tamanha banalização e comercialização do sexo. Há uma mediocridade sexual. Sexo deve estar associado ao amor, mas não estamos vendo isso.

Peraí, olha a caretice... Sexo por prazer também tem o seu lugar. Ou não?

Estou falando de amplos movimentos sexuais, de Tinder, aplicativos, da solidão do desejo oculto não realizado das grandes massas. Não existe informação sexual, cultura do amor. O amor é a arte de amar, né? Você vai aprender isso em algum lugar?

O que existe hoje é essa liberdade sexual vulgarizada, comercializada, que está levando as pessoas a trepar como cachorro. Existe a coisa de se soltar, fazer sexo em qualquer circunstância e ter um falso prazer. O que pode levar à frustração. O caminho da libertação não é a sexualidade, ele é existencial.

O Tinder liberou a ninfomania, que vai além do desejo. É um desastre psicológico existencial, consumismo, comercialização do sexo. Você paga uma taxa, quanto mais gente e mais match, mais dinheiro se ganha. O imediatismo do sexo é grave.

O exercício da conversa ficou em segundo plano...

As pessoas já não querem o exercício da conversa, do conhecimento. Põem foto de 15 anos atrás, falam o que não fizeram, enganam a si mesmos e aos outros. Não se lê um livro, é a formação pelo videogame. "Quem é Dostoievski, Tchaikovsky, Proust, Carl Porter? O que é 'Quebra nozes'?'"

Estamos no tempo do culto à ignorância. Sabedoria, informação e inteligência, como disse Nelson Rodrigues, têm a profundidade da Gillete no asfalto. As pessoas precisam aprender a amar.

Como?

Existem ótimos livros. O "Cânticos dos cânticos", da Bíblia, é um bom livro sobre amor. O problema é existencial, tem que haver uma busca espiritual. Vamos dar sentido à existência. Estamos num movimento inverso. As pessoas querem ir para raves, ficar descontroladas, beijar na boca de 20.

Estamos vivendo num país de bêbados, em que se trabalha 8 horas, sai-se correndo para beber uma cerveja e vai para casa ver Netflix. Esse é o conceito de qualidade de vida.

Conversando aqui com você, tenho a sensação de que é bem menos transgressor do que parece. O seu jeitão, de quem fala logo uma barbaridade para chocar, é uma casca, uma defesa para não se mostrar realmente?

Não. É porque o que deve ser dito, tem que ser falado (risos). Existe um artista com convicção, vigor, linha de pensamento, estilo. E existe a vida pessoal. Acham que Neville é diferente porque me comparam com os filmes. Eles são uma oportunidade de mostrar o Brasil. Mas paguei um preço alto dos moralistas. Passaram a vida tentando anular o artista porque não faço nada de acordo com o que pensam.

Refletindo com os olhos de hoje, acha que contribuiu mais para a objetificação do corpo da mulher ou para a libertação do nosso desejo?

Em "A dama do lotação", apareceu pela primeira vez no cinema brasileiro a mulher exercendo o seu desejo. Fiz uma pesquisa com cinco mil filmes e nenhum deles mostrava isso. Essa frase era o conceito do filme: "Ela se entrega a todos para continuar amando o seu marido". Era uma aberração (risos).

Os maridos ficavam em pânico. Quando o casal ia assistir junto, se o marido falasse que gostou, a mulher já punha um bico. Se ela que dissesse, ele já chamava de "vadia, safada". Todo mundo tinha que mentir. Mas quando as pessoas iam sozinhas, diziam: "Espetacular, nunca vi um filme assim".

Meus filmes têm um alcance muito mais profundo do que o que você falou aí... Como é?

Objetificação. Isso é ridículo, uma visão medíocre. Neville influenciou comerciais, novelas, casos especiais, cinema. Trouxe a liberdade que a gente vê hoje. Na Netflix, todo capítulo de série tem uma cena de sexo. São coisas que Neville fez há 20, 30, 40 anos atrás.

Os que me condenavam são os que me copiam. Quero ver quem estava ali antes, quem teve coragem de fazer um filme na ditadura militar e ser interditado por 50 anos ("Jardim de guerra", de 1970, com roteiro de Jorge Mautner, Dina Sfat, Glauce Rocha, Antonio Pitanga, Hugo Carvana, entre outros no elenco), quem nunca se intimidou com censura. Neville é aquele que todos copiam, mas querem esconder.

Eu tinha uma admiração profunda pelo Cinema Novo, que é da minha geração. Mas sabia que não era o meu caminho. Fui censurado em quatro filmes e ninguém levou um dedo para me defender. Era muito diferente de tudo. Sou o cineasta mais proibido da história do cinema brasileiro. Eles omitem isso, existe uma história oficial do cinema brasileiro que tem que ser revista. Alguns movimentos oprimiram e diminuíram os outros.

"Eles" que você fala é quem?

A classe, os que dominam, escrevem, contratam, decidem, produtores, membros dos editais, chefes, diretores. Você acha normal eu nunca ter sido chamado por nenhuma dessas televisões? Existe um movimento de tentar enterrar vivo quem tem mais talento.

Você participava das surubas que filmava?

Nunca, embora elas existam o tempo todo e me convidam. Não tinha vontade. Sempre fui muito seletivo, prefiro estar com uma pessoa só. Tem 30 anos que não bebo. Pegava pesado. Foi ficando cada vez pior, não me sentia bem, tinha dor de cabeça, não ficava pleno. Outro dia, estava numa festa com 200 pessoas e só eu não bebia.

Mas não participava não por causa de bebida ou droga, era por ideologia. Não acho que o artista deva fazer tudo que mostra. Não faço psicanálise com meus filmes. Não faço cinema para comer atriz. Há diretores que fizeram isso. Não faço nem questão de ser amigo, só penso no filme. Quando estou ali com 200 figurantes, é uma responsabilidade imensa. Sou exigente nos detalhes, por isso consigo algo que ninguém faz.

Filmei grandes atrizes nuas e nunca tive nada com ninguém. Na época, colocava a mulher com quem era casado na época (Liège Monteiro) como assistente para não ter provocação. Porque existe gente querendo foder para melhorar papel. Tinha uma lenda no cinema brasileiro de que atrizes deviam transar com os fotógrafos para ficarem melhores nos filmes. Isso é para filme que não tem diretor, né?

Já disse que ninguém sabe filmar sexo. Qual o segredo?

É o que falta para os grandes mestres do cinema. Hitchcock não filmou sexo, nem Eisenstein. Agradeço a Renoir, que mostrou a maravilha do corpo humano. Pintores, para mim, são influências. Essa coisa de rasgar o véu e mostrar.

Quando comecei, os filmes brasileiros mostravam pessoas na cama embaixo de um lençol que cobria até o pescoço. Ninguém transa assim em lugar nenhum! Jamais aceitei esse preconceito contra o sexo. Quero passar a emoção daquele momento. O segredo é o sentimento.

Se a vida sexual do diretor de alguns dos filmes mais quentes do cinema brasileiro sempre foi bem normalzinha, hoje também é?

Aos 82 anos, ainda rola (sexo). Quero fazer uma foto nu com o meu pau duro e um lencinho (marca registrada de Neville) amarrado nele. Existe um grande preconceito com o idoso, o etarismo, que é igual ao preconceito de cor, com gay, LGBT. Acham que a terceira idade é para ficar dançando feito bobo num asilo qualquer. Você não percebe que passou, continua fazendo as mesmas coisas.

Não tem mais velho em lugar nenhum! Nos júris dos programas de TV... Nos realities, as provas para líder são todas físicas. Está errado! Tem que ter idoso em todas as camadas. Há o mito de que essa garotada vai resolver tudo. Não vai! Quem vai resolver tudo é a sociedade integrada. Deixar os velhos fora das decisões é uma burrice.

Não sei se vai dar tempo de fazer tudo que quero. Existe um momento em que a gente fica preocupado de não ter mais tanto tempo. Mas tenho disposição, roteiros e muitas ideias. Só não produzo. E hoje a produção virou uma coisa familiar...

Aprendi também que se você ficar carregando um projeto durante muito tempo, ele vira uma cruz e você, um sofredor. Corre o risco de nunca fazer. Mas nesse tempo você vai pensando, tendo outras ideias. São elas que me movem.

Em "Rio babilônia" você faz um retrato moral da sociedade que permanece bastante atual...

Eu dizia: "Se alguém quiser saber como era o Rio na virada dos anos 80, veja 'Rio babilônia'". Mas tudo que tem ali está acontecendo hoje. "Jardim de guerra" também fala sobre o futuro. Era um filme-manifesto. Ali, tem a primeira cena de movimento feminista da história do cinema brasileiro com Dina Sfat, do poder negro com o Pitanga...

Falamos de preconceito racial, do movimento de drogas, gay parade. Isso em 1968. Tudo isso também é hoje. Por isso, defendo a revisão que te falei. É preciso ver o cinema brasileiro e toda a sua grandeza, não num determinado grupo que o dominou ideologicamente.

Tenho uma curiosidade... Aquela cena do ménage à trois na piscina em "Rio babilônia" aconteceu de verdade? Porque parece tão real...

Um casal me procurou durante as filmagens propondo fazer sexo de verdade na festa que aparece no filme. Fizeram, foi genial, paguei para eles fazerem. Mas a cena da piscina, com Joel Barcelos, Pedro Aguinaga e Denise Dumont acho que não rolou... O cloro atrapalha a penetração, resseca (risos).

Naquele dia, a Denise chegou para mim e disse: "Tenho uma surpresa para você: pintei meu pentelhos de roxo, quer ver?". Vê só, dá pra ver eles meio roxos na piscina.

Você já disse que a Bruna Marquezine "precisa muito" de você. Por que? O que proporia a ela?

Não é uma pretensão arrogante. Ator precisa de boas histórias, grandes escritores, bons diretores. A história é o mais importante. Nesse sentido, a Bruna Marquezine precisa muito do Neville para se libertar como atriz, viver um verdadeiro desafio.

Proporia que ela vivesse intensamente um personagem. Se os atores não estão lutando por esses personagens é porque não me conhecem.

Quando lançou "A frente fria que a chuva traz" (filme de 2015), ressaltou o fato de Bruna Linzmeyer não "ostentar o corpo de academia" e emendou: "Ela entende as dobras que o corpo tem". Acha que, hoje, há uma preocupação maior com a aparência por parte dos atores em detrimento da eficiência?

Quando vou fazer um trabalho com o ator, não me interessa se ele quer, R$ 5 mil, R$ 500 mil ou R$ 5 milhões. Só faço uma pergunta: Se ele está disposto a viver intensamente o personagem. Se responder sim, vamos continuar conversando. Se não, nem continuo.

E alguém já respondeu "não"?

Claro! Meus personagens não são brincadeira. Regina Casé, uma das maiores atrizes do mundo, em "Os sete gatinhos"... Tem uma cena com o Mauricio do Valle na piscina em que ele diz: "Eu sou deputado e vou te comer". E ela: "Caguei para você ser deputado, você não vai me comer". E ele: "Eu tenho imunidade". Ela: "Foda-se suas imunidades". Sabe lá o que é fazer uma cena dessa?

Atores estão doidos para essa entrega, mas existem poucos diretores capazes de fazer essas propostas, que são as verdadeiras interpretações. A gente está acostumado com interpretações clássicas. Chora, finge que está sofrendo, fala meia dúzia de besteira... São bonecos!

Atrizes brasileiras são as melhores do mundo. Quando vejo Meryl Streep ganhar três Oscars, penso que Sonia Braga deveria ter ganhado uns seis, Fernanda Montenegro; 12. Christiane Torloni, Denise Dumont, Regina Casé, Claudia Raia, Vera Fischer... São geniais!

Quando filmávamos "Navalha na carne" (1997), crucifiquei a Vera Fischer numa metáfora, porque todas as prostitutas são santas, né? Amarrei ela na Lapa, estava frio. Uma hora, ela disse: "Neville, não aguento mais, estou aqui há duas horas, quero sair, me tira pelo amor de Deus". Era isso que a gente precisava para a cena, que ela não estivesse mais aguentando. Então, eu disse: "Vamos rodar".

Adoro trabalhar com atores, eles são 60% do filme.

Do que se trata "Obsessão"?

É sobre uma bailarina perseguida por um voyer. Ele vai ficando cada vez mais obsessivo, se masturba e invade o banheiro para abusar sexualmente dela. Nisso, pisa em um sabão, escorrega e vai com a cara na privada. Gosto das cenas com símbolos prosaicos.

Tenho outra história em que a mulher mata o cara com um cabo de vassoura (risos).Vou rodando como posso. Neville não ganha editais. "A dama do lotação" foi a segunda bilheteria da história do cinema brasileiro de 1978 a 2010 e, nesses 32 anos, ninguém me chamou para nada.


Patricia Niedermeier em cena de 'Obsessão', novo filme dirigido por Neville D'Almeida, que conta a história de uma bailarina perseguida por um fanático (vivido por Bernardo Jaloto) Foto: Divulgação

Acha que não tem o reconhecimento que merece?

O problema é o cabresto ideológico na cultura. Na verdade, os problemas são três: o cabresto ideológico contra os verdadeiros artistas, o talento que incomoda os burros, que são maioria e a miséria sexual.

O que é cabresto ideológico?

São grupos políticos que dominam as artes, críticos, instituições que têm compromisso ideológico. A hipocrisia da sensibilidade social é grande. "Ah, estou preocupado com os pobres, tenho que votar num governo de esquerda, aceitar a orientação para continuar ganhando editais". Falo dos últimos 50 anos.

A nova geração dos cineastas é completamente viciada em editais. Fazem o cinema do edital. Isso não é pecado e nem defeito, mas atrapalha muito o artista.As pessoas não estão querendo muito ser artistas. Só na hora de comprar roupa cara, viajar, ficar em hotel cinco estrelas... Existe uma coisa material cada vez mais forte e a exaltação do ego.

Seu último filme foi feito em 2015. Do que você vive?

Não posso reclamar, tenho é agradecer a Deus todos os dias. Por ter um pavilhão no Inhotim, o Cosmococa, a obra mais visitada de lá. Fiz um dos filmes mais vistos da história, vendo instalações, tenho contrato com galerias, faço exposições internacionais. O pessoal das artes plásticas diz que não sou artista. O de cinema, que não faço mais cinema, mas artes plásticas. De todos os lados querem se livrar de mim por causa do talento.

Vivo das 11 instalações que vendemos para o Inhotim dentro do Projeto Hélio Oiticica, com que tenho contrato de copropriedade. Vendi mais de 200 fotos da Cosmococa. Ao longo desse tempo, consegui viver modestamente.

Estou nessa casa pré-fabricada há mais de 30 anos, a coisa mais barata que tinha. Não cabe tudo o que tenho, mas estou feliz. Ganhei quase um milhão de dólares com "A dama do lotação", mas me separei e deixei uma cobertura de 500 metros quadrados para a minha ex-mulher. Vim morar num lugar que é uma comunidade que as pessoas esnobam. Queria ter uma vida com cachorro, gato, árvores, flores. Vivo modestamente, mas criando todos os dias.

Ainda permanece com a ideia de fazer "A dama da Internet" com a Anitta?

Seria maravilhoso, mas queria alguém que tivesse compreensão da força do personagem. Ando sonhando com a Pabllo Vittar. O conceito de "A dama da Internet" (o projeto existe há 10 anos, tem roteiro e livro prontos) é uma mulher que espezinha os homens, faz o que eles têm feito com elas nos últimos dois mil anos: oprime, humilha, bate, escraviza. Ela usa a internet para foder os homens existencialmente. Os coloca em seus devidos lugar, principalmente, a lata de lixo.

Quando Ana Branco, a fotógrafa que te clicou para esta entrevista, disse que faria um close seu, você disse que ela captaria "uma tristeza imensa". O que tem te causado esse sentimento?

É uma citação poética. Não quer dizer que não exista alegria, prazer e criação. Mas você se apegou no ponto certo. É um estado de espírito. O Brasil dá uma tristeza profunda. O que está acontecendo com a cultura, a arte, a educação, os índios, nossas maiores riquezas. O projeto de mineração em terras indígenas é uma loucura, permite aeroporto, estrada de ferro...

Somos o único país que tem seres ainda em condição primitiva. Estamos torrando nossos potenciais. A flexibilização de armas para armar garimpeiros, posseiros, milícias. A guerra na Ucrânia é igualzinha ao que as pessoas fazem há dez anos nos games: derrubar, matar, explodir, usar armas moderníssimas. Crianças aprendem isso. Vivemos numa civilização que cultua a morte. Se não é para ficar angustiado com isso...

Fonte: O Globo