Produção mostra a força de uma cantora perseguida e resgata imagens dos últimos anos do gênio

Porto Velho, RO - É o jornalista Juca Kfouri quem dá voz à pergunta dos espectadores diante das imagens de um Garrincha combalido, olhar vazio, tossindo, enxugando o suor com um lenço, enquanto se equilibra sentado num carro alegórico da Mangueira, no carnaval de 1980: “como é que nós deixamos chegar naquele ponto?”, questiona.

A cena é um dos resgates históricos de ‘Elza & Mané’, documentário em quatro episódios do Globoplay, que repara injustiças a Elza Soares — uma força da natureza capaz de superar toda sorte de preconceitos e adversidades —, e traz de volta à tona o longo e triste fim do jogador que era a alegria do povo.


Elza Soares e Garrincha em 1966 Foto: Mario Coelho Filho / Agência O Globo

A surpresa não é necessariamente pela biografia de Garrincha, de ascensão no Botafogo e queda para o alcoolismo já tão conhecidas e bem detalhadas no livro “Estrela Solitária”, do jornalista Ruy Castro. Mas pelo contraste entre as imagens que todo fã de futebol guarda do jogador (os dribles no Maracanã com a camisa do Botafogo, o bi mundial com a seleção, o sorriso largo e desfalcado ao passar por joões), e os vídeos agora recuperados.

São entrevistas após internações ou confusões policiais por violência doméstica, a dificuldade em falar por causa da mistura de álcool e remédios, ganho e perda de peso, as tentativas frustradas de jogar. Tudo isso sendo exibido, consumido, assistido e ouvido até a sua morte, em janeiro de 1983.

— Eu sabia que tinha o desfile da Mangueira, algumas entrevistas, mas quando fui ver as latas de películas, fui pega de surpresa. Aquela cena que ele está em Bangu, assim que coloquei na moviola, fiquei emocionada. A alegria do povo ter um final daquele... — conta a diretora Caroline Zilberman se referindo a outro trecho do documentário: o ex-jogador, triste e fragilizado, sentado na calçada em frente à sua casa, em Bangu, em 1980. O retrato do ostracismo.

O trabalho de pesquisa no acervo da TV Globo começou em abril do ano passado, depois das leituras biográficas. Foram dois meses para assistir e separar as imagens, antes de partir para pesquisas em jornais — uma parte particularmente difícil, uma vez que Elza e Garrincha ocupavam das páginas esportivas, seções de música e colunas sociais às manchetes policiais nos últimos anos do relacionamento. Eles se conheceram em 1962, quando o jogador ainda era casado, e a união durou de 1966 a 1982.


Mané Garrincha em cena do documentário "Elza & Mané Amor em linhas tortas", do Globoplay Foto: Divulgação

— Ao longo de 1963 a 1965, no fim da carreira dele no Botafogo, a Elza era colocada como vilã. E muito do ódio em direção a ela partiu de torcedores inconformados com seu ídolo, que não rendia mais. No documentário, ela não se negou a responder e fazia questão de dizer que não tinha rancor.

A produção entrevistou Elza três vezes a partir de junho do ano passado e documentou o último show da cantora, em 19 de dezembro, no Pará. Caroline e equipe estavam partindo para a montagem do último episódio quando receberam a notícia da morte, em 20 de janeiro — exatamente na mesma data da partida de Garrincha, 39 anos antes.

A série mostra como Elza fez de tudo para que a carreira de Garrincha durasse mais: a campanha para emplacá-lo na Copa-1966; a organização do Jogo da Gratidão, em 1973, no Maracanã, para arrecadar fundos; as promessas em vão para que ele parasse de beber. Uma luta para que seu amor não sucumbisse, mesmo sendo vítima das agressões dentro de casa e de toda sorte de críticas aos olhos do público.

— Elza tinha a memória da perseguição muito viva. Mas ela superou isso, como superou todas as tragédias de sua vida.

Fonte: O Globo