Dezenas de mosteiros e igrejas ao redor do mundo afirmam ter pelo menos um pedaço em seus altares para a veneração de seus fiéis; qual é a verdade por trás disso?

Porto Velho, Rondônia - Relato que fundamenta as crenças dos cristãos, Jesus de Nazaré foi crucificado por ordem do então prefeito romano na Judeia, Pôncio Pilatos, e sua jornada até a morte - uma série de eventos conhecidos como a Paixão - é um dos elementos centrais lembrados na Semana Santa.

A crucificação foi tão fundamental na história do cristianismo que a cruz acabou se tornando o símbolo das religiões que veneram a figura de Jesus Cristo. Mas o que aconteceu com aquela cruz onde ele foi crucificado?

Dezenas de mosteiros e igrejas ao redor do mundo afirmam ter pelo menos um pedaço da chamada "verdadeira cruz" em seus altares, para a veneração de seus fiéis. Muitos deles baseiam a veracidade da origem de suas relíquias em textos dos séculos III e IV, que relatam a descoberta em Jerusalém do pedaço exato de madeira onde Jesus Cristo foi executado pelos romanos.

Representação de Jesus Cristo em vitral de igreja — Foto: Thomas por Pixabay

"Essa narrativa, que inclui o imperador romano Constantino e sua mãe, Helena, foi o ponto de partida para a história da cruz de Cristo, que chegou até os dias de hoje", explicou à BBC Mundo Candida Moss, professora de História dos Evangelhos e do Cristianismo Primitivo na Universidade de Birmingham.

Baseia-se nos escritos de historiadores antigos como Gelásio de Cesareia ou Jacobo de la Vorágine. No entanto, para muitos historiadores modernos, esses textos não determinam a autenticidade dos pedaços de madeira que vemos hoje em vários templos ao redor do mundo - nem podem servir como confirmação de sua procedência.

"É muito provável que aquela madeira não seja a cruz onde Jesus foi crucificado, porque muitas coisas podem ter acontecido com aquele pedaço de madeira. Por exemplo, os romanos poderiam tê-la reutilizado para outra crucificação, em outro lugar e com outras pessoas", aponta Moss.

Então, por que surgiu a história da 'verdadeira cruz' e por que há tantas peças que supostamente fazem parte do 'maior tronco'? "(Pelo) desejo de ter uma proximidade física com algo que acreditamos", responde à BBC Mundo Mark Goodacre, historiador e especialista em assuntos do Novo Testamento da Universidade de Duke, nos Estados Unidos. "As relíquias cristãs são mais um desejo do que uma realidade".

Representação de Jesus Cristo — Foto: Luciano Ramos Solari por Pixabay

Na narrativa dos evangelhos, após a morte de Jesus na cruz, seu corpo foi levado a um sepulcro na Cidade Velha de Jerusalém. E durante quase 300 anos, não houve menção no relato cristão a qualquer pedaço de madeira.

Foi por volta do século IV que se acredita que o bispo e historiador Gelásio de Cesareia publicou uma narrativa em seu livro "A História da Igreja" sobre a descoberta em Jerusalém da "verdadeira cruz" por parte de Helena, santa da Igreja Católica e também mãe do imperador romano Constantino, que tornou o cristianismo a religião oficial do Império.

A narrativa, que é referenciada por outros historiadores e por escritores como Jacobo de Vorágine em sua Lenda Dourada do século XIII, indica que Helena, enviada por seu filho para encontrar a cruz de Cristo, foi levada a um local perto do Monte Calvário, onde se supõe que Jesus foi crucificado, e lá encontrou três cruzes.

Procissão encena a busca e prisão de Jesus Cristo — Foto: Secom Goiás

Algumas versões afirmam que Helena, ao duvidar de qual seria a verdadeira, colocou uma mulher doente em cada uma das cruzes e aquela que finalmente curou a mulher foi considerada autêntica.

Outros historiadores afirmam que ela a reconheceu porque era a única das três que tinha sinais de ter sido usada para uma crucificação com pregos, já que, de acordo com o evangelho de João, Jesus foi o único crucificado com esse método naquele dia. "Toda essa narrativa faz parte do desejo por relíquias que começou a ocorrer no cristianismo durante os séculos III e IV", aponta Goodacre.

O acadêmico observa que os primeiros cristãos não estavam focados em buscar ou preservar esse tipo de objetos como fonte de sua devoção. "Nenhum cristão durante o século I saiu por aí colecionando relíquias de Jesus", observou. "À medida que o tempo passou e o cristianismo se espalhou pelo mundo da época, esses crentes começaram a criar maneiras de ter alguma conexão física com aquele que consideravam seu salvador", acrescenta o acadêmico.

A origem da busca por essas relíquias tem muito a ver com os mártires. De acordo com os historiadores, o culto aos santos começou a se tornar uma tendência dentro da Igreja e, por exemplo, estabeleceu-se cedo que os ossos dos mártires eram evidência do "poder de Deus agindo no mundo", produzindo milagres e outros eventos que "provavam" a eficácia da fé.

E como Jesus ressuscitou, não era possível procurar seus ossos: segundo a Bíblia, após três dias no túmulo, seu retorno à vida e posterior "ascensão aos céus" foi corporal. Portanto, não havia nada além de objetos para se conectar com ele, como a e a coroa de espinhos, entre outros.

"Esse período de tempo, quase três séculos após a morte de Jesus, é o que torna improvável que esses objetos encontrados em Jerusalém, como a cruz onde ele morreu ou a coroa de espinhos, sejam reais", observa Goodacre. "Se os primeiros cristãos tivessem feito isso, tendo um contato mais próximo com os eventos originais, poderíamos falar de uma possibilidade de serem reais, mas isso não aconteceu".

Representação de Jesus Cristo — Foto: Pixabay

Parte da cruz atribuída à missão de Helena foi levada a Roma (a outra permaneceu em Jerusalém) e, de acordo com a tradição, a maior parte dos restos é preservada na Basílica de Santa Cruz, na capital italiana.

Com a "descoberta", a expansão do cristianismo pela Europa durante a Idade Média e a cruz que se tornou o símbolo universal dessa religião, também começou a multiplicação de fragmentos que foram parar em outros templos. Esses fragmentos são conhecidos como lignum crucis ("madeira da cruz", em latim).

Além da Basílica de Santa Cruz, as catedrais de Cosenza, Nápoles e Gênova, na Itália; o Mosteiro de Santo Toribio de Liébana (que possui o maior pedaço), Santa Maria dels Turers e a Basílica da Vera Cruz, entre outras, na Espanha, afirmam ter um fragmento do lenho onde Jesus Cristo foi executado.

A abadia de Heiligenkreuz, na Áustria, também guarda um pedaço, e outro segmento muito importante está na Igreja da Santa Cruz, em Jerusalém. Além da evidência física, os concílios de Niceia, no século IV, e de Trento, no século XVI, deram validade espiritual à devoção dessas relíquias, tanto que foram consignadas no catecismo:

Papa Francisco chega à basílica de São Pedro para presidir a Vigília Pascal — Foto: TIZIANA FABI / AFP

"O sentido religioso do povo cristão sempre encontrou expressão em várias formas de piedade em torno da vida sacramental da Igreja, como a veneração das relíquias", pode-se ler no ponto 1674 deste tratado que registra a doutrina da Igreja Católica.

Mas também indica que as relíquias em si não são "objetos de salvação", mas sim meios para alcançar a intercessão e "os benefícios por Jesus Cristo, seu Filho, nosso Senhor, que é apenas nosso redentor e salvador". Além disso, a multiplicidade de fragmentos foi questionada em seu tempo por vários pensadores.

O teólogo francês João Calvino observou no século XVI, em meio a um aumento do tráfico de relíquias onde abundavam os fragmentos da chamada "verdadeira cruz" distribuídos por igrejas e mosteiros, que "se quiséssemos reunir tudo o que foi encontrado (da cruz), haveria material suficiente para encher um grande navio". No entanto, essa afirmação foi posteriormente contestada por vários teólogos e cientistas ao longo da história.

Representação de Jesus Cristo — Foto: Thomas por Pixabay

Recentemente, Baima Bollone, professor da Universidade de Turim, observou em um estudo que, se todos os fragmentos que afirmam fazer parte da cruz de Cristo fossem reunidos, "só conseguiríamos reunir 50% do tronco principal".

Veracidade

"É muito provável que Helena tenha encontrado um pedaço de madeira, mas o que também é muito provável é que alguém o tenha colocado lá para dar a ideia de que era a cruz onde Jesus morreu", diz Moss.

A acadêmica aponta que há outra dificuldade em provar se esses pedaços realmente pertenceram, pelo menos, a uma crucificação ocorrida durante a época de Cristo. "Por exemplo, a datação por carbono, que seria uma das primeiras coisas a se fazer, é cara e uma igreja média não tem fundos para esse tipo de trabalho", observa.

E mesmo que fosse possível obter financiamento para financiar um estudo desse tipo, a pesquisa envolve afetar a integridade da relíquia. "Além disso, a datação por carbono é considerada invasiva e um pouco destrutiva. Mesmo que sejam necessários apenas cerca de 10 miligramas de madeira, ainda assim implica cortar um objeto sagrado", observa Moss.

Representação de Jesus Cristo — Foto: NoName_13 por Pixabay

Em 2010, o pesquisador americano Joe Kickell, membro do Comitê para Pesquisa Cética, conduziu um estudo para determinar a origem das lascas que eram consideradas parte da "verdadeira cruz".

"Não há uma única evidência que respalde que a cruz encontrada por Helena em Jerusalém, ou por qualquer outra pessoa, seja a verdadeira cruz onde Jesus morreu. A história da procedência é ridícula. E o caráter miraculoso de que pode ser recomposta, não importa quantos pedaços dela você retire, também", escreveu Kickell em seu artigo "A verdadeira cruz: Chaucer, Calvino e os traficantes de relíquias".


Fonte: O GLOBO