Em entrevista, Fabiana D'Atri, estudiosa da economia chinesa, afirma que embora riscos de baixa pareçam controlados, chances de alta não estão claras

Porto Velho, RO - Uma das principais referências na análise da economia chinesa no Brasil, Fabiana D’Atri manteve uma série de encontros na semana passada no circuito Pequim-Xangai, em mais uma de suas muitas visitas desde 2008, quando começou a acompanhar o país. Economista do Bradesco Asset Management, D’Atri compartilhou com a coluna suas impressões sobre o momento atual do país e como está sendo a adaptação a um “novo normal” de crescimento menor do PIB.

O que mais chamou sua atenção nesta última viagem?

Quando vim em outubro do ano passado, na primeira vez desde a reabertura pós-pandemia, me chamou muito a atenção a questão da falta de confiança. Foi o que deu o tom da viagem. A sensação era de que estava tudo muito difícil e não se sabia para onde o país estava indo. Isso melhorou, essa já não é mais a principal questão. Agora é o excesso de capacidade. Se há seis meses toda reunião começava com a falta de confiança, agora começa com excesso de capacidade. 

O tom é: há excesso de capacidade, isso gera um problema, que é deflação, e a solução está sendo exportar. É uma narrativa que eu não ouvia há muito tempo aqui na China. Antes da pandemia, era o oposto, a ordem era corrigir o excesso de capacidade. É o jeito do chinês, ele pensa em oferta e ao mesmo tempo é competitivo. 

Então todo mundo faz a mesma coisa, os fortes sobrevivem, os fracos desaparecem e o mercado se consolida. O excesso de capacidade faz parte do processo produtivo e de sobrevivência. Só que isso não era verdade seis meses atrás, muito menos antes da pandemia. Parece que virou uma verdade absoluta.

Por que isso está acontecendo agora?

A percepção é de que a demanda não vai bem, mas também não vai tão mal, está ok. É o novo ritmo de crescimento chinês. Mas não é exatamente que falta demanda. Há uma certa frustração com a demanda, uma cautela dos consumidores. Mas muito mais do que isso, há um excesso de oferta. Não é que a China esteja parada e que não haja demanda suficiente. Comparada a seis meses atrás, a situação melhorou. Aí entra a exportação, até quando e até quanto ela será aceita. 

Pode haver barreiras comerciais com tarifas, mas isso demora a ser implementado. E até que isso aconteça, a janela será aproveitada. O pensamento [dos chineses] é: somos mais competitivos e vamos vencer. E isso é com tudo o que se pode imaginar, não só painéis solares, carros elétricos, aço, é em tudo. É uma sensação de que tudo isso não cabe aqui. Nesse processo, assumem-se margens menores ou a ausência delas. 

O interessante é que essa narrativa também se reproduz em modelos de negócio. Em logística, por exemplo, há uma concorrência do modelo mais eficiente, de quem consegue reduzir custos e cortar etapas do processo de entrega de um produto. Obviamente que isso tem consequências, na deflação, na pressão de preços, em que na contrapartida abre-se mão de lucros, e aí é preciso uma válvula de escape.

A economista Fabiana D’Atri — Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

Esse excesso de capacidade é espontâneo, como um efeito manada, ou fruto de incentivo oficial?

Acho que acabou acontecendo, não era planejado. Foi uma combinação de vários fatores: investimentos feitos durante a pandemia e que não foram usados nesse período, mais o consumo que ficou reprimido em todo esse tempo. Acho que tem a ver um pouco com o período da pandemia. Enquanto a China estava fechada, a gente não percebia. 

Minha percepção ao observar a China ao longo dos anos é de que muitas coisas acontecem silenciosamente, sejam elas planejadas ou não. Por exemplo, indústria de painel solar, automóveis elétricos, são casos clássicos do que foi planejado. Esse foi um caminho planejado, talvez numa velocidade mais rápida, talvez questões geopolíticas tenham acelerado o processo, não há uma única razão.

Outra coisa que aconteceu foi que, nos últimos anos em que o setor imobiliário ficou mais fraco, buscaram-se alternativas na economia. Quem substituiu grande parte da demanda que não vem mais do setor imobiliário? Foi infraestrutura. Mas também teve uma dúvida da direção a seguir. Não necessariamente a construtora começou a fazer fábrica e a produzir, digamos, drones. Mas houve uma realocação do capital para outros setores e isso foi acontecendo gradualmente. Nesse sentido, não são só forças movidas por políticas públicas. 

A sensação é de “o que temos pra hoje?”, como faço para sobreviver e onde boto meu dinheiro? A indústria vinha numa esteira, que foi uma opção do governo, de avanço tecnológico, forçada algumas vezes pela questão geopolítica, em que alguns mercados se fecham e você precisa criar o seu próprio. Foi uma combinação de fatores em que, de repente, aconteceu. Mas não foi de um dia para o outro. Até porque o excesso de capacidade não acontece em dois dias, diferentemente de um estímulo para consumo.

Tem um dado trimestral que eu acompanho, que é o de obras em construção por metro quadrado. Não só do setor imobiliário, mas também de plantas industriais. E já há alguns trimestres isso cresce a 10%, 12%, enquanto o setor imobiliário caía 15%. O que está acontecendo? São plantas industriais subindo. Foi preciso usar esse parque industrial, onde foi usado aço, cimento. Essa é a capacidade produtiva que agora está excedente.

Quais as consequências do excesso de capacidade?

A minha impressão é de que eles vão deixar acontecer. E cada interlocutor com quem eu falei tem uma resposta. Pode ser que mercados se fechem, mas a leitura é de que há mercados alternativos. Se fecharem os dos países desenvolvidos eles têm a Ásia, a África, o Oriente Médio. O ponto deles é aquele, quem quiser preço baixo eu tenho. Obviamente eles sabem que pressões muito claras continuarão vindo dos EUA, mas aí vai se trabalhando com outros mercados e a cada segmento. Eles vão criando janelas, o chinês é muito bom em se adaptar. O entendimento é que 2024 ainda será uma boa janela para exportar. Os desafios vão crescendo, mas enquanto existir uma janela ela vai ser aproveitada.

As consequências também são sentidas no Brasil, como mostram as recentes investigações sobre dumping nas importações chinesas.

Claro que alguns segmentos, em especial o do aço, já se posicionou, e nós não sabemos como essas investigações vão terminar. Outros debates virão, como já vinha acontecendo, de aumentar tarifa, ou fazer um acordo. Tem um formato que acontece na Europa hoje, que é: produza no meu território. Isso desenvolve a cadeia produtiva local, gera renda, emprego e valor agregado, inclusive com transferência de tecnologia. 

Acho que as negociações vão ser bem complexas, porque não há uma única solução. Sobretaxar todos os segmentos não me parece o caminho. Vai ter que ser negociado caso a caso, eu abro mão disso e exijo aquilo, mas será preciso negociar em diversas ordens.

O jogo sempre foi jogado assim, tem fases em que a corda estica mais, em outras afrouxa. Entramos numa fase em que a corda está um pouco mais esticada, porque a pressão foi muito rápida em diversos setores. E quando se tem uma percepção generalizada de excesso de capacidade as ações vão se somando. E claro, as relações têm dois lados, toda vez que se pensa em exportações existe a contrapartida da importação. Por isso eu acho que entramos numa fase bem complexa, no sentido de não haver uma solução única.

Por que sua impressão é de que a crise de confiança na China já não é tão grave?

A sensação é que se esse é o novo normal, se a China cresce menos, é preciso fazer alguma coisa para sobreviver. E, dada essa situação, buscam-se oportunidades até se entender o que é esse novo padrão de crescimento. Antes ele era mais alto, agora está em 4,5%, 5%, é menor, mas vai se acostumando com o novo normal. Há um entendimento de que há uma nova realidade. Além disso, parece que o ajuste no setor imobiliário está chegando ao fim. Significa que ainda tem queda de preço, mas que o pior ficou para trás. E há essa percepção de melhora na renda e de que as coisas vão voltando ao normal, com lojas mais cheias. Só de não ter piorado nos últimos meses já é uma melhora.

A sensação é menos de acomodação do que adaptação, e “o que dá para fazer agora”. E, bem, já são três, quatro anos de ajuste no setor imobiliário, o pior já foi. A confiança continua abalada, mas parou de piorar. Quando se está numa tendência negativa, a primeira coisa é parar, antes de melhorar. Alguns interlocutores também lembraram que a China reabriu no fim de 2022 [do período da pandemia], mas muita coisa na prática só começou a acontecer em meados de 2023. É natural, foi assim também em outros países.

Alguns analistas acham que o crescimento do PIB deixou de ser prioridade para o governo chinês, que quer focar no que chama de “desenvolvimento de alta qualidade” e nas “ novas forças produtivas”. É também a sua impressão?

Não é consenso que o crescimento foi abandonado como prioridade, ainda há iniciativas para preservar o crescimento. Tem essa coisa da qualidade, mas tem que crescer. Alguns interlocutores são mais vocais, mas ninguém diz que o crescimento foi abandonado. Há prioridades como segurança, autossuficiência, tecnologia, mas todas conversam com o crescimento. O que parece claro hoje é que não se pensa mais em crescimento a qualquer custo.

Sobre as “novas forças produtivas”, há várias interpretações. Muitos dizem que é o que já estava acontecendo, economia verde, tecnologia, digital, não é nada novo. É um refraseamento de estratégias que já estão sendo adotadas há algum tempo, ou o desdobramento delas. Não acho que haja nenhum outro novo setor ou nova senha do que virá pela frente, mas o reforço daquilo que vem se buscando, que é o avanço tecnológico como a base do crescimento. Alguns acham que é uma frase vazia. Mas no fundo é uma tendência global.

Se parou de piorar, quais as chances de uma retomada econômica mais robusta?

A sensação é de que os riscos de baixa ligados a governos locais e construtoras, os setores com maior endividamento, isso parece controlado, e a orientação é que o governo dê suporte. É bom lembrar que, mesmo com o ajuste do setor imobiliário, não houve desordem financeira. 

Hoje eu construo um cenário em que os riscos de baixa são muito mais controlados. Não significa necessariamente que as chances de alta são evidentes. O objetivo neste momento é estabilizar, parar de piorar. E por isso os estímulos são sempre menores que os esperados. 

A palavra mais certa hoje é suporte, não estimulo. E aí vão se encontrando novas dinâmicas. Esse é o desafio da China nos próximos anos, claramente não é mais a dinâmica do setor imobiliário. Por ora tem essa da indústria, da tecnologia, da inovação, e a grande questão é conectar o consumo a esse modelo, porque vai ter que haver mercado para isso, seja interno ou externo. Qual será o ritmo de crescimento? Isso ainda está em aberto.


Fonte: O GLOBO