Em novo livro, Daniel Buarque analisa contradições entre as ambições do Brasil em se tornar potência global e sua imagem vista no exterior

Porto Velho, Rondônia - Em momentos em que a política externa do governo Luiz Inácio Lula da Silva provoca debates e o presidente recebe críticas por falas e posicionamentos sobre temas como Venezuela e a guerra entre Israel e o grupo terrorista Hamas, o novo livro de Daniel Buarque, pesquisador do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP), analisa em profundidade o projeto do Brasil de tornar-se uma potência global.

Intitulado “O status internacional do Brasil e o reconhecimento como potência emergente” (editora Palgrave Macmillan), o terceiro livro de Buarque sobre Brasil é o resultado de quatro anos de pesquisa durante seu doutorado no King’s College, na Inglaterra, na qual entrevistou 94 especialistas (incluindo, entre vários diplomatas, dez ex-embaixadores no Brasil) dos cinco países que ocupam uma vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU (EUA, China, Rússia, França e Reino Unido). “Há um descompasso muito grande entre o que o Brasil acha que deveria ser seu lugar no mundo e o que esses cinco países, que são potências estabelecidas, acham que o Brasil tem direito”, disse.

Qual foi seu principal objeto de pesquisa?

Sempre se fala sobre o que o Brasil quer, sobre o desejo de ser uma potência global. Meu interesse foi pesquisar o outro lado da história, para entender qual é o nível de reconhecimento que o Brasil alcança nessa ambição de ter um lugar de destaque no mundo. A teoria das relações internacionais indica que esse prestígio só existe quando ele é reconhecido pelo outro, especialmente quando ele é reconhecido pelo outro que já tem um status mais alto. Por isso, fui atrás do que pensam nos países que são membros permanentes do Conselho de Segurança.

E que respostas o senhor encontrou?

Existe um descompasso muito grande entre o que o Brasil acha que deveria ser seu lugar no mundo e o que esses cinco países, que são potências estabelecidas, acham que o Brasil tem direito. Eles acham que o Brasil não tem essa relevância toda.

Como o Brasil é visto por esses cinco países?

O Brasil é reconhecido como um ator importante em algumas questões, como meio ambiente. Mas, nas grandes questões globais, o Brasil não é visto como um país importante e sim como o que chamo de peão cobiçado. Por um lado, essas potências dizem que o Brasil não tem relevância, ou seja, é um peão pouco influente. 

Mas, ao mesmo tempo, querem que no jogo internacional o Brasil esteja do lado deles, por isso o peão cobiçado. Os russos foram os entrevistados mais vocais, eles diziam “a gente só vai apoiar o Brasil se o Brasil apoiar a gente”.

Por que o Brasil não tem, na visão desses cinco países, o que é necessário para ser uma potência global?

Um dos motivos é porque o Brasil costuma ficar em cima do muro em grandes discussões globais. Alguns se perguntam para que o Brasil quer ser membro permanente do conselho, se, quando o país está no conselho, abstém-se das principais disputas. Um país que quer liderar deve assumir os custos de liderar, sejam financeiros ou políticos. As grandes potências acham que o Brasil precisa tomar uma atitude, ser mais vocal e tomar decisões.

A tradição diplomática brasileira é falar com todos os lados e promover o diálogo…

A estratégia de ser neutro é positiva para uma potência média. Para ser um interlocutor global, não. Pense numa Noruega, que conversa com todos, mas não têm a ambição de ser uma grande potência. É fundamental que você veja como sua estratégia é vista de fora, para repensar. Os diplomatas brasileiros dirão que isso é um absurdo, que o Brasil tem uma estratégia clara e sabe muito bem o que quer. O livro diz que o mundo não percebe isso.

Ou não concorda com a estratégia do Brasil?

Na pesquisa surgiram outras perguntas. O Brasil quer ser uma grande potência para quê? É fundamental que o governo e os diplomatas entendam como a estratégia brasileira está sendo vista para saber passar para o mundo o que se quer. Toda a polêmica sobre Israel mostrou que Lula e seu assessor internacional Celso Amorim estão dispostos a aceitar o preço político por ter uma postura de liderança. 

Eles estão apostando no isolamento de Israel, e que, nesse contexto, o Brasil apareça como um dos primeiros que o acusou de genocídio. É uma aposta e pode dar errado, mas, se der certo, estará rompendo com a tradição de ficar em cima do muro. E escolher um lado é algo que se espera que o Brasil faça.

A fala de Lula comparando Israel com Hitler o surpreendeu?

Sim, foi surpreendente. Lula já vinha dando indícios, mas uma postura tão dura como essa é rara, sobretudo para a diplomacia brasileira. É interessante, porque é uma escolha de lado que não implica em um alinhamento com a China, mas sim com o Sul Global, e não é diretamente contra os EUA. Lula usou Israel, que tem uma relevância menor para o Brasil e que está no olho do furacão, para testar um posicionamento. É uma posição cômoda, porque existe uma crítica global contra Israel.

Teve custos para o Brasil?

Se teve algum custo foi interno, talvez fortaleceu a oposição. Mas no mundo Lula foi aplaudido por muitos, sobretudo pelo Sul Global. O problema, a meu ver, é que, mais uma vez, o Brasil está apostando numa ordem política multipolar e em ser representante do Sul Global. Mas hoje ninguém acredita em ordem multipolar, especialmente no momento em que temos guerras na Europa e no Oriente Médio, e no qual quem tem armas e dinheiro é quem tem relevância. 

Não estamos mais em 2005 ou 2008, quando havia um contexto global diferente. Os próprios EUA aceitavam a ideia de reforma do Conselho de Segurança da ONU. Hoje ninguém espera isso. Hoje se fala em bipolaridade global entre EUA e China, e achar que haverá espaço para uma nova potência do Sul Global é ser ingênuo.

Que outras críticas são feitas ao Brasil de Lula?

O que mais ouvi é que, para o Brasil se tornar uma grande potência, precisa “botar a casa em ordem” e apostar no desenvolvimento. A Índia tem a mesma ambição e foi atrás disso construindo capacidade de poder real, com desenvolvimento econômico, poder militar, parece seguir a fórmula mais tradicional. O Brasil segue uma fórmula alternativa, que até hoje não deu resultado.

Falta liderança inclusive na América Latina?

O Brasil quer ser representante da região, mas não convence a própria região. Lula já teve muita influência regional, mas hoje não tem. Os entrevistados me diziam que muitas vezes o Brasil parece atirar para todos os lados. O Brasil deveria apostar em pacificar a Venezuela, liderar a América do Sul, por exemplo. 

Não se vê ganho em se envolver nas discussões sobre a paz em Gaza, ou na guerra entre Rússia e Ucrânia. Grandes potências fazem isso, mas o Brasil não tem essa influência. O melhor é centrar-se no que está ao seu alcance.


Fonte: O GLOBO