Para a historiadora, ataques de 2023 foram segunda de três etapas para consolidar a ruptura, que só não houve por falta de suporte interno e externo

Porto Velho, RO - Em seu novo livro, “A máquina do golpe — 1964: Como foi desmontada a democracia no Brasil”, a historiadora resgata minuciosamente o período que antecedeu o golpe. Ao comparar 64 com o 8/1, Heloisa ressalta o papel da sociedade na defesa da democracia, fala em destruição das Forças Armadas pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e alerta para a decisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de não relembrar o passado.

Países da América do Sul têm tratamentos tão diferentes em relação à memória e a golpes. Como a senhora analisa essa questão no Brasil?

Por que conhecer a história do golpe de 64 é importante? Porque ela fornece repertório para a gente pensar o presente. Como aconteceu? Como esse golpe foi organizado? Como podemos garantir a democracia? O passado é que fornece esse repertório para que a gente possa avançar e reparar os erros. Não é por acaso que a fatia reacionária da sociedade brasileira, que é o bolsonarismo, tenta apagar o passado. Exatamente porque querem controlar a História e o presente.

O que acha de o governo não promover eventos sobre os 60 anos do golpe?

É um erro do presidente Lula, muito pelo que falamos anteriormente. Quando entendermos o que falamos sobre 64, entenderemos o que acontece hoje. O compromisso do presidente com a democracia é real, não há o que discutir. Pode ser que o contexto, aí estou rigorosamente especulando, dentro daquilo que ele viveu no período da ditadura, tenha feito ele avaliar dessa maneira.

Em 64 o golpe se consolidou, com apoio dos EUA e de governadores. Por que isso não se repetiu em 8/1?

O 8 de Janeiro foi a segunda etapa da tentativa de golpe, antes houve o planejamento. Foi a execução, quando cria-se uma ação política de desestabilização das instituições para que se possa agir e tomar o poder, que é a terceira etapa. Mas o momento era diferente de 64, da situação de desestabilização. A posição internacional, também. 

Em 64, os Estados Unidos eram a favor do golpe e hoje são completamente contrários, com manifestações inclusive de outros países, que não dariam apoio a essa ação. A imprensa no 8/1 defendeu a democracia, o que não aconteceu em 64, quando o editorial de um dos jornais mais importantes do Brasil, o “Correio da Manhã”, saiu com um “Fora, Jango!”. 

O terceiro elemento foi a grande parte da sociedade brasileira que no 8 de janeiro saiu em defesa da democracia, que se manifestou a favor do voto. Em 64, ocorreram reações diferentes, como a Marcha da Família. No 8 de janeiro, as forças a favor da democracia e da legalidade se uniram.

Como a senhora analisa o papel das Forças Armadas?

Na República há uma disposição das Forças Armadas de tutelar. A intervenção política é muito grande, é como se a República precisasse de uma bengala. É importante, na atual conjuntura, que a gente não perca a chance de eliminar e refazer o artigo 142 da Constituição (confere às Forças a garantia de poderes constitucionais), deliberadamente dúbio. 

Chamar a sociedade para fazer uma discussão para valer do que é um projeto de Defesa do Brasil nas nossas fronteiras e embalar as Forças Armadas naquilo que é a posição delas.

Pela primeira vez as Forças estão envolvidas em investigações. Qual sua opinião sobre isso?

É algo inédito. Anos atrás era inimaginável. É a indicação mais clara do processo de destruição que o ex-presidente Bolsonaro impôs às Forças Armadas. Não sabemos a extensão desse processo de degradação. Nós não sabemos qual é a extensão desse processo dentro da instituição militar, como estão pensando nos quartéis, quais intenções bolsonaristas permanecem.

Bolsonaro resgata um sentimento anticomunismo de 64, analisado em seu livro. Há espaço ainda para essa narrativa?

Você tem uma construção do anticomunismo com (Getulio) Vargas, em que há a insurreição e os comunistas armados. A partir daí é construído um imaginário elástico, que cabe em qualquer circunstância. Em 64, tem a presença de um campo de treinamento de guerrilheiros financiado “por culpa do comunismo”. Com Bolsonaro, comunismo é Venezuela. A palavra virou algo que dá nome ao “mal”. Por ser elástico, vai se adaptando à História.


Fonte: O GLOBO