Para os animais de criação, conter a doença é duplamente importante: a perda econômica é brutal, somada ao risco de facilitar uma zoonose. Quanto mais o vírus se replica, maior a chance de mutações

Estamos acostumados a pensar em plantas resistentes a pragas e doenças, obtidas tanto através de processos tradicionais, como seleção e hibridização, como métodos mais modernos de melhoramento genético, como transgenia e edição gênica. Agora começam a surgir também os animais de criação modificados geneticamente; temos exemplos de salmão no Japão e vacas nos Estados Unidos.

Recentemente, um grupo de pesquisadores no Reino Unido publicou estudo na revista Nature descrevendo o uso da tecnologia CRISPR/Cas9, que permite fazer edições no genoma com bastante precisão, para desenvolver galinhas resistentes à gripe aviária. Já comentamos neste espaço como o vírus da influenza H5N1 tornou-se uma ameaça para aves domésticas e silvestres, com milhares de animais acometidos na Ásia, Europa e Américas. 

Para os animais de criação, conter a doença é duplamente importante: a perda econômica é brutal, somada ao risco de facilitar uma zoonose. Quanto mais o vírus se replica livremente na criação, maior a chance de surgirem mutações que tornem possível um ataque a células humanas. Basta lembrar os surtos passados de gripe suína e aviaria.

Vacinar os animais é possível, mas envolve desafios logísticos, custos e eficácia duvidosa, pois a alta taxa de mutação e recombinação deste tipo de vírus torna provável um escape de vacinas. Criar um frango resistente a vírus da gripe pode, portanto, ser a saída de melhor custo-benefício no longo prazo.

Os resultados deste primeiro trabalho são promissores. Longe de trazer uma resposta definitiva, o estudo funciona como uma prova de conceito, mostrando que estamos no caminho certo. Os cientistas recortaram o genoma dos frangos para modificar as instruções de criação de uma proteína que ajuda o vírus a se replicar. 

Sem esta proteína, em teoria, o vírus influenza não conseguiria se multiplicar no organismo das aves. Os animais editados cresceram normalmente, saudáveis, e toda sua prole também mantinha as modificações genéticas. Agora era hora de testar a resistência à gripe.

O primeiro teste foi expor as aves editadas a uma quantidade determinada do vírus, estimada como similar a um surto normal em animais de cativeiro. Aves não editadas foram usadas como controle. Todos os animais do grupo controle foram infectados, mas apenas um dos dez editados. Mesmo no único animal editado infectado, a carga viral observada foi menor. 

O passo seguinte foi aumentar a quantidade de vírus usada no teste: mil vezes mais. Os resultados já não foram tão bons. Desta vez, metade do grupo editado ficou doente, ainda que com menor carga viral e menor capacidade de transmissão do vírus, quando comparado com o grupo controle.

Os pesquisadores sequenciaram o genoma do vírus e descobriram algumas mutações que podem ter ajudado o microrganismo a superar a proteína alterada. Isso pode ser um problema para o uso dessa tecnologia, porque criar condições que favoreçam vírus mutantes pode acabar levando a adaptações que permitam infectar células humanas. É um risco grande demais.

Por isso, o próximo passo é tentar repetir o experimento editando três genes em vez de um só, e tentar garantir a proteção contra a doença mesmo em animais expostos a grandes quantidades do vírus. Isso deve levar ainda algum tempo. Também é preciso garantir que os animais editados sejam perfeitamente saudáveis. 

O primeiro passo, no entanto, que era demonstrar o conceito, já foi dado. E pode mudar o futuro dos animais de criação. Há dez mil anos modificamos animais e plantas para nosso consumo. A edição de genoma permite fazer isso de forma mais segura e precisa, com a vantagem de ainda, talvez, ajudar a prevenir novas epidemias.


Fonte: O GLOBO