
Não se trata de fenômeno isolado. Cada vez menos os atletas de base dependem de serem aproveitados em cima para terem visibilidade. Resultado de uma realidade em que o consumo de futebol pelo torcedor extrapolou as fronteiras da categoria principal.
Quase todos os jogos do sub-17 e do sub-20 são exibidos seja em emissoras convencionais ou em canais de Youtube. Hoje, por exemplo, o Sportv transmitirá a decisão da Copa do Brasil sub-20, entre Cruzeiro e Grêmio, às 11h, e as duas semifinais do Brasileiro sub-17: São Paulo x Flamengo, às 18h; e Palmeiras x Corinthians, às 20h30.
Quando não há transmissão pela TV, os jogos podem ser conferidos pelos canais oficiais dos clubes no Youtube. Como a rodada do Carioca sub-17 e a final da Copa Rio sub-20, entre Botafogo e Fluminense, neste último sábado.
— Quando jogador, disputei cinco copas São Paulo. E para passar na TV só se chegasse na final. Hoje, meu sub-20 tem entre 20 e 25 jogos por ano transmitidos em canais convencionais. Se considerar o Youtube, são todos — relembra João Paulo Sampaio, coordenador das categorias de base palmeirenses. — Claro que o clube tem chegado em muitas finais. Mas essa média é alta. É uma visibilidade importante na hora de negociar com patrocinadores.
A valorização da base enquanto vitrine para a marca dos patrocinadores é apenas um dos impactos. A transmissão de mais jogos também trouxe uma pressão maior da torcida por resultados. Só que revelar talentos e vencer campeonatos são processos com velocidades diferentes.
— O torcedor esquece que, na base, cada ano faz muita diferença. Às vezes meu time sub-17 tem 70% de atletas com 16 anos, alguns quase sub-15, porque o treinador acredita no potencial deles e trabalha com progressão de longo prazo. Mas vou jogar contra um rival que tem nove com 17. Dá quase um ano e meio de diferença. Se eu perder, estou consciente que foi porque estamos dando margem aos meninos. Mas se o clube não tiver capacidade de entender isso e só olhar para o resultado, teu trabalho fica em xeque — relata Erasmo Damiani, gerente da base do Atlético-MG, expondo um dilema cada vez mais comum:
— O treinador com o emprego ameaçado pode mudar de conceito. Montar um time para ganhar competição, não para formar atleta.
Dispensas de técnicos por falta de resultados em campo já entraram para a rotina da base. Em junho, o Vasco demitiu a comissão do sub-17 após as eliminações nas Copas do Brasil e Rio da categoria. No início do ano, o Bahia anunciou a saída de Diogo Siston do sub-20 após a eliminação na Copa SP. Um ano antes, o mesmo treinador foi desligado do Corinthians depois do insucesso do time na própria Copinha. E esses são apenas alguns exemplos.
Para Guilherme Torres, coordenador metodológico de Xerém, este fenômeno decorre da falta de convicção no processo de desenvolvimento de talentos. Hoje, o Fluminense é um dos principais formadores do país. Na partida que o classificou para a final da Libertadores, seis revelações do clube estiveram em campo.
— Passa também pelo processo de educação dos treinadores de base. Muitas vezes só pensam na projeção de carreira, e o resultado pode alavancá-la. O clube precisa entender cada etapa do desenvolvimento do atleta, dando respaldo para que o trabalho independa de resultado de jogo, para que a avaliação seja mais ampla — diz Torres, sem deixar de apontar um aspecto positivo do maior destaque dado às competições.
— Dizer que o resultado não tem nenhum peso não é verdade. O jogo e a competição preparam os jogadores para o que eles vão encontrar no profissional. Desde de que sejam bem explorados pelos clubes.
Esta dualidade segue presente em outros aspectos. Minutos antes de atender a reportagem dO GLOBO, João Paulo Sampaio recebeu o telefonema do representante de um atleta do sub-20 do Palmeiras. O assunto: o interesse de dois clubes, um estrangeiro e um brasileiro, em seu cliente. A maior visibilidade da base contribuiu para aquecer ainda mais o mercado de transferências.
— O jogador passa a ser mais conhecido em todos os sentidos. Nas redes sociais, na TV... Vira um pop star ainda novo, sem nem ter jogado no profissional. E isso chama a atenção dos clubes de fora, que conseguem analisá-los sem nem precisarem vir ao Brasil, porque possuem plataformas para isso — afirma o agente Frederico Moraes, fundador da Promanager, que nos últimos anos intermediou ao menos quatro grandes vendas internacionais: João Pedro, Kayke e Metinho, do Fluminense; e Savinho, do Atlético-MG.
Os clubes têm o desafio de evitar que a exposição precoce atrapalhe o desenvolvimento dos atletas. Uma das principais preocupações de JP Sampaio é com o uso das redes sociais, que hoje se tornaram uma vitrine na qual estes atletas se exibem por meio de recortes de vídeos de gols e outros lances. O coordenador da base palmeirense se define um "fantasma" e diz fiscalizar pessoalmente as postagens de jogadores e até de membros das comissões.
— Eles são projetos e já pensam que a obra tá pronta. Nem subiu parede ainda. Mas isso é a empolgação dessa fama, que vem principalmente das redes sociais. Só que num dia te amam, no outro te odeiam. Então tem que tomar muito cuidado. Aqui a gente controla muito isso, para quando ganhar nao se empolgar, respeitar o adversário, estar com os pés no chão. Porque ali (nas redes) é um mundo de mentira.
O contato direto com o torcedor, potencializado pelas redes sociais, pode tanto criar deslumbramento quanto abatimento. E o trabalho é fazer com que saibam lidar com elogios e críticas.
— Quando chegam às categorias de maior visibilidade, a gente tenta fazer com que percebam como todos os olhos estão voltados para eles. É o cuidado de fazer o que chamamos de psicoeducação para com esses agentes: torcida, cobrança da instituição e da comissão técnica. Antes de tudo, eles precisam saber quem são e os instrumentos que dispõem para agir em relação a isso — explica Simone Luz, psicóloga da base do Fluminense.
— A gente trabalha com eles que torcedor é movido à paixão. Quando o time está bem, ele (atleta) é ótimo. Quando não, tudo é ruim. Eles precisam saber lidar com essa alternância.
Fonte: O GLOBO
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