Integrar o conhecimento tradicional à medicina moderna, quando feito com respeito às evidências, pode ser boa ideia

Quando se fala em conhecimento tradicional, em geral imagina-se algo separado, ou até antagônico, à medicina moderna. De um lado, teríamos medicamentos produzidos por indústrias bilionárias, testados em ensaios clínicos randomizados e aprovados pelas agências regulatórias. 

De outro, teríamos medicamentos tradicionais, baseados em conhecimentos de povos originários, tradições e folclores. São os remédios de ervas, as garrafadas, os chás curativos, e que muitas vezes se misturam com superstições, bênçãos e rituais religiosos. Há iniciativas que sugerem integrar o conhecimento tradicional à medicina moderna. Se for feito com respeito às evidências, isso pode ser uma boa ideia.

Um exemplo de conhecimento tradicional que virou medicina moderna, descrito em detalhes no livro “Que Bobagem!”, é a artemisinina, molécula derivada da farmacopeia herbal da medicina tradicional chinesa (MTC) e que acabou se transformando em um dos medicamentos mais utilizados para tratamento de malária.

Vinda da planta Artemisia annua, também conhecida popularmente como sweet wormwood em inglês, “doce absinto” no português, a substância foi descoberta e isolada por uma equipe de cientistas formada nos anos 1960 para comprovar cientificamente um tratamento para malária derivado de MTC. Youyou Tu, a pesquisadora principal, examinou mais de duas mil ervas, selecionando 640 que pareciam promissoras. Em 1971, ela e colaboradores escolheram a artemisia, que mostrava um potencial de inibição do parasita causador da malária, mas tiveram muita dificuldade de obter bons resultados.

Tu havia encontrado um texto médico antigo que aconselhava preparar uma infusão das ervas com dois litros de água fria, espremer bem o suco e tomar tudo, sem ferver. A cientista imaginou que a fervura destruiria a estrutura das moléculas bioativas, e talvez por isso os escritos antigos falassem em água fria. Assim, resolveu adaptar a extração usando éter etílico. 

O extrato final foi bem-sucedido em inibir malária em roedores. Em 1972, o grupo conseguiu isolar o composto de efeito antimalárico. Elucidada a estrutura da molécula natural, os cientistas desenvolveram a dihidroartemisinina, uma molécula modificada que era ainda melhor. Em 1984, o Ministério da Saúde da China certificou a artemisinina, e em 1992, sua derivada dihidroartemisinina. Tu recebeu o Prêmio Nobel em 2015.

Todo o processo levou quarenta anos. A artemisinina é um exemplo de pesquisa cientifica séria e meticulosa, feita dentro da melhor metodologia moderna. Não é o primeiro exemplo de uma ideia vinda dos usos tradicionais que dá origem a um medicamento importante de uso global. Já contamos nesta coluna a história da aspirina, que também foi descoberta a partir do uso tradicional da casca do chorão.

Integrar conhecimento tradicional à medicina moderna é, portanto, não só desejável, mas perfeitamente possível de ser feito, com respeito às evidências. 

Desrespeitoso, ao contrário, seria tratar o conhecimento tradicional como algo frágil, que precisa ser protegido do olhar científico, incapaz de resistir ao rigor metodológico da medicina moderna, condenado a um papel meramente folclórico ou “complementar” e que para sobreviver requer regras, tratamento e categorias especiais que o imunizem contra testes e impeçam eventuais aperfeiçoamentos tecnológicos que possam aumentar eficácia e segurança. 

A integração do conhecimento tradicional à medicina moderna já existe, e já produz resultado para a sociedade. Quando bem-feita, chamamos essa integração de pesquisa científica de qualidade. Rende até, como no caso da artemisinina, Prêmio Nobel.


Fonte: O GLOBO