Através de casal, longa que toca em ferida histórica do país é dirigido por Kiyoshi Kurosawa; diretor do premiado "Drive my car" assina o script

Porto Velho, RO - Nome ligado ao cinema de gênero, Kiyoshi Kurosawa viu esse escopo se ampliar quando os então pupilos Tadashi Nohara e Ryusûke Hamaguchi (agora mundialmente famoso por conquistar o Oscar de melhor filme internacional com “Drive my car”, no último domingo) lhe ofereceram um projeto envolvendo uma história de amor e um capítulo obscuro da história do Japão.

Nascia ali a vitoriosa trajetória de “A mulher de um espião”, que chega aos cinemas brasileiros hoje depois de conquistar o prêmio de direção no Festival de Veneza de 2020, e circular por diversos festivais internacionais.

É a primeira experiência do realizador conhecido por suas incursões no terreno do terror e da ficção científica, como “Cura” (1997) e o “O segredo da câmara escura” (2016), no drama de época. Ao mesmo tempo, “A mulher de um espião” é uma rara produção japonesa a tocar numa das feridas da Segunda Guerra: o famoso centro de pesquisas médicas instalado pelo Exército Imperial na Manchúria, região da China ocupada, onde se faziam experiências químicas e biológicas com prisioneiros de guerra. É em torno da descoberta desse crime de estado que transcorre a luta do casal de protagonistas para superar a desconfiança e permanecer fiel ao seu amor um pelo outro.

— A ideia é confrontar os desejos do indivíduo com as aspirações da sociedade, como eles podem coexistir, particularmente dentro do contexto de uma guerra — teorizou o veterano realizador de 66 anos durante o Festival de Veneza. — Mesmo nos filmes anteriores, todos ambientados no tempo presente, há um tema recorrente: a forma como nossa sociedade está estruturada, e como o indivíduo segue suas normas ou luta contra o sistema.

Mas é difícil dizer o que está certo ou o que está errado quando vivemos o presente. Trabalhar o passado é mais fácil, por causa da perspectiva histórica, temos a noção do que é verdade e do que não é.

A ação de “A mulher de um espião” começa em 1940, logo após a invasão japonesa na Manchúria e um pouco antes da assinatura do Pacto do Eixo, acordo de defesa mútua estabelecido entre a Alemanha, a Itália e o Japão.

A trama observa a rápida evolução do fascismo no país sob a perspectiva de Yusaku Fukuhara (Issei Taahashi), um rico comerciante de seda da cidade de Kobe, e sua jovem mulher, Sakoto (Yu Aoi). Quando Taiji (Masahiro Higashide), chefe da polícia da região e amigo de infância do casal, descobre que Yusaku pagou a fiança de seu sócio inglês, preso sob a acusação de vazar segredos de estado, é logo advertido para “tomar cuidado com aqueles que ele considera seus amigos”.

Passado de presente

É o primeiro sinal para o comerciante, que se diz “cosmopolita”, de que há algo errado em seu país. O segundo, mais determinante, é testemunhado durante uma viagem de negócios à Manchúria, onde tropeça nas atividades da Unidade 731, especializada em guerra biológica e química. Horrorizado, Yusaku decide denunciar o crime ao mundo, ao que sua mulher inicialmente se opõe, antes de aderir à causa. Yusaku e Taiji representam, de certa forma, duas facetas opostas de um país em transição: primeiro é o humanista com senso de justiça, adepto dos costumes ocidentais; o segundo é o nacionalista incapaz de acreditar que o Império possa fazer algo de errado.

Embora exponha um crime de guerra pouco explorado e ainda controverso no Japão, Kurosawa não acredita que o assunto seja “um tabu” em seu país.

— Não fiz um filme com a intenção de passar qualquer mensagem política. Minha intenção foi apenas criar uma forma de entretenimento, com suspense e romance, a partir de fatos de um determinado período histórico — disse o diretor. — “A mulher de um espião” não pretende julgar a forma como o passado e o presente se relacionam.

Minha função é mostrar algo que aconteceu naquele momento, e que muito tempo passou desde então. Como raramente vejo filmes japoneses ambientados durante a Segunda Guerra, é natural esperar reações novas, frescas. Espero que cada pessoa faça seu próprio julgamento depois de assisti-lo.

Como o próprio título já sugere, a trama é contada do ponto de vista não do “espião”, o “traidor da pátria”, mas do de sua companheira, Sakoto. É ela que observa, atenta e muitas vezes à distância, os passos do marido que, a princípio, faz segredo sobre suas descobertas e intenções, deixando uma trilha de dúvidas atrás de si.

Primeiro, há a suspeita de uma infidelidade, associada a viagens misteriosas e mulheres desconhecidas; depois vem o terror de que as atividades do marido coloquem a família em risco. E assim, com elementos dos melodramas do mestre Kenji Mizoguchi (1898-1956) e dos thrillers de Alfred Hitchcock (1899-1980), Kurosawa costura seu drama de espionagem.

— É muito mais interessante falar sobre com o que os japoneses comuns lutavam e sobre que tipo de vida levavam naquela época pelos olhos de uma mulher — concluiu Kurosawa.

Fonte: O Globo