Exercício da segurança direcionado aos conflitos internacionais passou a incorporar as atividades das pessoas comuns

Porto Velho, Rondônia - O desenvolvimento e o uso de tecnologias de vigilância acelerados no pós-11 de Setembro transformaram as sociedades em algo cada vez mais parecido àquelas das grandes obras de ficção científica. 

Após duas décadas da Guerra ao Terror, o exercício da segurança direcionado aos conflitos internacionais passou a incorporar as atividades das pessoas comuns, com as democracias ainda debatendo o limite entre privacidade e proteção à segurança nacional.

Especialistas e levantamentos da área estabelecem a Lei Patriótica (Patriot Act), criada e promulgada apenas 45 dias após o 11 de setembro de 2001, como um grande símbolo da expansão massiva da vigilância governamental nos EUA e, por consequência, mundo afora. 

Ao mesmo tempo, as discussões à época sobre a tecnologia da guerra e os grandes sistemas de armas não eram suficientes para combater a ameaça do inimigo invisível.

Manifestantes demonstram apoio a Edward Snowden, que revelou a ampla coleta de dados de cidadãos pela NSAJONATHAN ERNST/REUTERS


Publicado em 2019, um estudo do centro Carnegie Endowment for International Peace intitulado The Global Expansion of AI Surveillance (A expansão global da vigilância por Inteligência Artificial, na tradução livre) chamou a atenção para o crescente número de Estados desenvolvendo ferramentas de vigilância por Inteligência Artificial (IA) para monitorar, rastrear e vigiar cidadãos dentro uma ampla gama de objetivos políticos.

Essas ferramentas, segundo o estudo, podem ser respaldadas por uma legislação ou ser contrárias aos direitos humanos - muitas delas ainda pairam em um meio-termo obscuro. 

O levantamento, um dos primeiros do tipo, apontou que 75 de 176 países estudados estavam utilizando tecnologia de vigilância por Inteligência Artificial ativamente, incluindo plataformas de cidade inteligente e cidade segura, sistemas de reconhecimento facial e policiamento inteligente, segundo as classificações do índice.

"Precisamos estar cientes de que o limite entre Segurança Nacional e privacidade pessoal pode mudar, mas deve mudar seguindo alguns padrões segundo os quais, independentemente de estarmos em estado de emergência, os direitos de privacidade devem ser mantidos como direitos humanos fundamentais"
Margaret Hu, professora da Penn State Law in University

No mundo que estava emergindo no pós-11 de Setembro, surge um conjunto tecnológico para tentar responder às novas ameaças, tratadas por alguns especialistas como assimétricas. 

O temor era com relação a grupos de pessoas que poderiam fazer um ataque de menor porte, mas ainda assim abalar a estabilidade das sociedades e provocar os efeitos de terror e medo, a base do terrorismo, como explica ao Estadão o pesquisador do Núcleo de Violência da USP Alcides Peron, autor do livro American Way of War: Guerra Cirúrgica e o emprego de drones armados em Conflitos Internacionais.

Entre essas tecnologias, estão sistemas de vigilância, de câmeras, de drones armados que não são vistos, outros que vigiam e produzem informações, sistemas biométricos que passam a ser testados em todos os lugares, assim como interceptação de dados telefônicos e cruzamento de informações.

“O que restou de tudo isso é um conjunto de tecnologias que serviu para administrar a produção de cercos e a gerenciar a circulação das pessoas e dos espaços urbanos. Tecnologias que aos poucos se diluíram no ambiente e se fizeram presente na vida cotidiana das pessoas”, explica Peron, também professor de relações internacionais na Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado (Fecap) e membro da Lavits (Rede Latino-Americana de Vigilância, Tecnologia e Sociedade).

 

Mesmo com a grande explosão no desenvolvimento das novas tecnologias de vigilância, ainda é difícil determinar sua eficácia em capturar terroristas, segundo Margaret Hu, professora da Penn State Law in University e pesquisadora de direito constitucional na era da Inteligência Artificial e big data, em entrevista ao Estadão. 

Para a professora, ainda há um debate aberto sobre a utilidade dessas tecnologias e o combate ao terrorismo, assim como os riscos que elas impõem à privacidade.

Esse debate, na opinião de Hu e de Peron, ficou mais evidente após as revelações do ex-técnico de segurança da informação da Agência Nacional de Segurança dos EUA (NSA) Edward Snowden. Em 2013, quase 12 anos após o 11 de Setembro, o agente, que também trabalhou para a CIA, divulgou documentos detalhando os programas de vigilância em massa do serviço de inteligência americano.
Visitantes de uma exposição em Shenzhen, na China, experimentam a tecnologia de reconhecimento facialBOBBY YIP/REUTERS


Em parceria com Snowden, em 6 de junho de 2013, o jornal britânico The Guardian publicou uma ampla reportagem sobre o armazenamento dos registros telefônicos de milhões de clientes da companhia americana Verizon. 

No dia seguinte, o jornal revelou o Prism, um sistema para recolher dados de gigantes da internet nos EUA, incluindo Google e Facebook. Foram as primeiras de uma série de revelações feitas por Snowden que o colocaram na posição de um dos maiores delatores da história e o forçaram ao exílio na Rússia.

"A máscara sobre o estado secreto de vigilância dos EUA foi finalmente tirada", afirma uma reportagem do último dia 4 de setembro do Guardian sobre o caso. 

"Todos nós fomos reduzidos a algo como crianças, que seríamos forçados a viver o resto de nossas vidas sob a supervisão onisciente dos pais", escreveu Snowden em seu livro de memórias, Vigilância Permanente.

Como previu o ex-professor de ciências humanas da UCLA Philip Agre, segundo mostrou reportagem do Washington Post, a coleta em massa dos dados mudaria e simplificaria o comportamento humano para torná-lo mais fácil de quantificar. 

"Uma realidade que se concretizaria no formato de um complexo industrial de dados que não conhece fronteiras e segue poucas leis", como escreveu o jornal.

Tecnologia de reconhecimento facial é apresentada pela German Bar Association em BerlimHANNIBAL HANSCHKE/REUTERS


Segundo Margaret, é preciso um diálogo aberto entre cidadãos, empresas e governos para estabelecer limites à tecnologia e ao armazenamento de dados. 

"Quando maior a ameaça percebida pelo lado da Segurança Nacional, mais difícil é argumentar contra a vigilância", afirma a professora. 

Para ela, em um estado de emergência, enquanto fica mais difícil para os cidadãos brigarem para manter o respeito à privacidade, as empresas tendem a ser mais colaborativas com os governos.

"Precisamos estar cientes de que o limite entre Segurança Nacional e privacidade pessoal pode mudar, mas deve mudar seguindo alguns padrões segundo os quais, independentemente de estarmos em estado de emergência, os direitos de privacidade devem ser mantidos como direitos humanos fundamentais."

Para Alcides Peron, ao longo dos últimos 20 anos, a sociedade foi se tornando cada vez mais o alvo dessa tecnologia de segurança. 

"Nos tornamos muito mais vulneráveis no pós-11 de Setembro justamente por que essas tecnologias todas disponíveis estão orientadas para monitorar o cotidiano e a estabilidade dos fluxos de capital e de circulação das pessoas", diz ele.

"Nos tornamos muito mais vulneráveis no pós-11 de Setembro justamente por que essas tecnologias todas disponíveis estão orientadas para monitorar o cotidiano e a estabilidade dos fluxos de capital e de circulação das pessoas"

Alcides Peron, pesquisador do Núcleo de Violência da USP

Para alguns analistas, no entanto, a obsessão pela vigilância tem um bom custo-benefício. Um estudo do centro Chatham House, assinado pela especialista Kathleen McKendrick, pondera que o uso da Inteligência Artificial no combate ao terrorismo, apesar de ser frequentemente criticado por seus riscos aos direitos humanos, aumenta as habilidades dos Estados de proteger o direito dos cidadãos à vida.

"A maioria dos Estados se concentra na prevenção de ataques terroristas, em vez de reagir a eles. Assim, a previsão é central para uma política de contraterrorismo eficaz. A Inteligência Artificial permite que maiores volumes de dados sejam analisados e perceber padrões nesses dados que estariam, por razões de volume e dimensionalidade, de outra forma além da capacidade de interpretação humana."

Fonte: O Estadão