Aliciamento estaria ocorrendo em vários Estados


Porto Velho, Rondônia - Missionários evangélicos têm espalhado mentiras sobre a vacina contra a covid-19 em aldeias na região Norte do Brasil, segundo requerimento entregue à CPI da Covid ao qual o UOL teve acesso. De acordo com algumas dessas mentiras, a vacina já vem contaminada da China em um plano "diabólico": usar o imunizante para marcar indígenas com o número da Besta, o 666 citado no livro bíblico do Apocalipse.


Ao todo, 54.438 foram infectados e 1.072 morreram de covid-19 desde o início da pandemia entre os cerca de 1,3 milhão de indígenas brasileiros, nas contas do Comitê Nacional da Vida e Memória Indígena, formado por lideranças e especialistas em saúde para conter os danos causados pela pandemia sobre esses povos. O Ministério da Saúde fala em 673 mortes.

No entorno de Santo Antônio do Içá, no Alto Solimões, no Amazonas, religiosos espalham mentiras entre integrantes do povo kokama, segundo o requerimento. Dizem "que o imunizante os transformaria em animais, homossexuais ou os mataria" e que "neles seria implantado um chip que carregaria a 'marca da Besta'".

Os relatos são confirmados por Milena Kokama, 63, vice-presidente da Federação Indígena do Povo Kokama. Ao UOL, ela descreve a estratégia usada "em todo o estado do Amazonas”. “Eles primeiro se aproximam da liderança da aldeia, se fingem de amigos e daqui a pouco casam com a filha da liderança: pronto, eles entram na aldeia e já constroem uma igreja", conta.

No dia 2 de fevereiro, um helicóptero da FAB (Força Aérea Brasileira) carregado de agentes de saúde e doses de vacina foi cercado por homens e mulheres empunhando arcos e flechas às margens do rio Purus (sul do Amazonas), na terra indígena dos jamamadis.

Os indígenas deram um ultimato, segundo aponta o requerimento: não receberiam o imunizante enquanto um missionário americano não fosse liberado para entrar na região e "os orientasse sobre a vacina".

Eles se referiam a Steve Campbell, da Greene Baptist Church, expulso da região em dezembro de 2018 pela Funai (Fundação Nacional do Índio) sob acusação de entrar ilegalmente nas terras da etnia hi-merimã, que vive isolada e é vizinha dos jamamadis. À Funai, Campbell se defendeu afirmando que precisou entrar em território hi-merimã como única maneira de acessar os jamamadis, a quem estaria ensinando a usar GPS.

Nas comunidades próximas ao rio Içá, afluente do Amazonas, "pastores teriam se dirigido ao município em tentativa de impedir que as vacinas chegassem na comunidade", afirma o relatório. Os responsáveis seriam da Igreja Mundial do Poder de Deus, liderada por Valdemiro Santiago, e da Igreja Internacional da Graça de Deus, do pastor R.R. Soares. Procuradas por e-mail, as congregações não responderam aos questionamentos do UOL.

Na maior concentração de povos isolados do mundo, no Vale do Javari (oeste do Amazonas), "aldeias já disseram à Sesai [Secretaria Especial de Saúde Indígena, do Ministério da Saúde] que não irão aceitar a vacina", segundo a União dos Povos Indígenas da região.

Apenas as comunidades vinculadas a grupos evangélicos seriam resistentes à imunização. "Na comunicação que eles fazem por rádio, que todas as aldeias escutam, eles dizem que a vacina foi fabricada muito rápido para os indígenas virarem cobaia", diz Beto Marubo, representante da entidade.

Milena diz que, para chegar ao Alto Solimões, onde vive seu povo, são cinco dias de barco. Não tem rua nem carro. "As informações chegam aqui distorcidas, perfeito para esses pastores", diz.

Já na terra indígena arariboia, no Maranhão, evangelizadores ligados à Assembleia de Deus usariam áudios e vídeos pelo celular, sistema de rádio das aldeias e cultos presenciais para convencer os indígenas "a não se vacinarem", segundo o requerimento entregue à CPI. Procurada por e-mail e telefone, a igreja não respondeu. Tem propagação por pastores de que a vacina vem junto com um chip, que tem o número da Besta, que quem toma a vacina vira jacaré."

Relatos parecidos teriam ocorrido em aldeias de Itacoatira (Amazonas), Xingu (Mato Grosso) e Rondônia, segundo a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira.

Uma das lideranças do povo apurinã e cacique da aldeia Decorã (AM), Zé Bajaga Apurinã, 55, contou ao UOL que há "uma lavagem cerebral nas aldeias com mais evangélicos". "Eles dizem que a vacina é uma marca para arrebatar ao inferno no dia do Juízo Final", diz. "Todos os que morreram de Covid foram recebidos pelo Demônio e que a vacina marca os que sobreviverem à doença."

Ele conta que sua própria tia, evangélica, era contra a vacinação na aldeia até que a filha dela morreu após infecção por covid-19. "Aí ela disse que teve um sonho e foi tomar a vacina", conta Bajaga.

Milena Kokama afirma que "não é só isso". "Quando morre um indígena por Covid, dizem que é pardo. Eu não sou parda, eu nasci kokama. Além de o nosso povo estar sendo enterrado em cova coletiva, sem dignidade nenhuma, no último documento diz que a gente não é indígena."

Em março, a Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas encaminhou a denúncia ao MPF (Ministério Público Federal), que instaurou um procedimento no Maranhão. O órgão pediu informação aos DSEIs (Distritos Sanitários Especiais Indígenas), os gestores do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena.

Em resposta, afirmaram que "todos os esforços estão sendo empreendidos pelos profissionais de saúde a fim de superar a campanha de desinformação e vacinar as comunidades", diz o MPF, que não respondeu se a prática é criminosa.

O UOL também procurou a Funai, que em nota afirmou que "não cuida diretamente da matéria, mas, sim, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai/Ministério da Saúde)". Procurado, o Ministério da Saúde não respondeu até esta publicação.